Há alguns anos, fui procurada por um leitor adolescente com nome de arcanjo. Dizendo-se apaixonado por um de meus livros, Gabriel me anunciava que um dia queria ser cineasta e, quando esse dia chegasse, pretendia transformar em filme aquela história que o impressionava. Tinha medo de que alguém o fizesse antes e me pedia para lhe deixar reservado esse direito. Como garantia, me enviava um projeto de roteiro. Surpresa: era bem feito. Não apenas revelava uma leitura atenta e inteligente do meu texto, mas uma sensibilidade capaz de criar a partir de onde eu parei. Concordei com a proposta e guardei a vaga para ele - mesmo quando, depois, fui abordada por outro candidato com um currículo mais experiente.
Não me arrependi. Mas o resultado demorou. Passaram-se os anos e Gabriel de vez em quando dava notícias. Estava estudando cinema. Achava que talvez descolasse um patrocínio. Animado, escolheu até o ator principal. E como se tratava de Vinícius de Oliveira, que acabara de fazer Central do Brasil, teve que fazer gestões junto a Walter Salles para que o liberasse, mediante aprovação prévia do roteiro. Mas o dinheiro acabou não saindo, o tempo passou, Vinícius cresceu… e o filme não saía.
Gabriel Costa acabou os estudos, casou, teve dois filhos, criou a Arcanjo Produtora, mas continuou sem descobrir o caminho das pedras para uma produção como sonhara. Mas não ficou reclamando, foi à luta. Resolveu tentar algo diferente: fazer um média-metragem de meia hora, destinado a um circuito alternativo (www.raulda - ferrugemazul.com.br). Custava menos. Partiu para as filmagens e agora, finalmente, pudemos ver a pré-estréia de Raul da Ferrugem Azul, no último dia 26, em evento aberto ao público no Espaço Blah do New York City Center.
No final da exibição, pensei que eu estava emocionada só porque a história era minha. Mas, em seguida, ouvindo os comentários na saída, percebi que não era nada disso. Ou não era só isso. O que o filme do Gabriel estava nos propiciando era um mergulho de cabeça na alma carioca. Um reencontro com nossa cidade. E andamos todos muito precisados disso. Cidade partida. Zuenir Ventura já a batizou assim e todos concordamos. Na excelente revista Carioquice, presente do Instituto Cravo Albin à cidade, Heloísa Buarque de Holanda observa que esse efeito de ruptura está declinando, graças a manifestações culturais como o funk. E segue a pista de Hermano Vianna, ao enfatizar seu aspecto de articulador cultural e seu poder de trânsito, integração e congregação entre tribos, classes e credos. De certo modo, ao escrever Cidade de Deus, Paulo Lins já desbravara esse caminho, trazendo a voz da periferia com uma linguagem forte e autoridade inquestionável. Impossível não se sentir enriquecido.
Pois a emoção que o filme de Gabriel Costa desperta tem a ver com isso, na medida em que nos traz um olhar carinhoso de diferentes partes da cidade, umas com as outras. A favela que sua câmera nos mostra não é vista por um olhar de fora, daqueles que desde Orfeu Negro não conseguiam resistir ao deslumbramento da paisagem tão cantada em sambas. Também não é mostrada como um ameaçador antro de marginais, como nos noticiários. Ela apenas é, está. Normal. Com discrição e singeleza, seus becos, escadarias, biroscas, oratórios, pracinhas, vão se revelando por dentro, no cotidiano. Um olhar de convívio íntimo, de quem conhece e se reconhece, cria cultura e se integra ao resto da nação, exporta sua imagem cheia de energia e beleza própria, se insere no mercado cultural, lança moda, agrega e soma, cola os cacos da cidade partida.
O filme Raul da Ferrugem Azul segue respeitosamente a linha do livro, acompanhando o menino da Zona Sul em sua descoberta de uma sabedoria que não está nos livros (nem na internet) mas vem de uma cultura tradicional, que ele precisa ir buscar em outra geração e outra classe. Ao buscar o Preto Velho lá no alto, não apenas reverencia o saber do passado, mas também respeita uma resistência contemporânea - sublinhada por Gabriel Costa no ritmo funqueado da trilha sonora do Biquíni Cavadão ou no visual incrementado dos adolescentes que circulam pelo morro. As discussões éticas e as questões íntimas essenciais da história ganham nova força com essa incorporação concreta da voz da favela e da comunidade do Pereirão. Ainda há muito chão pela frente. Mas dá para entender por que o filme não traz pronta uma saída, mas constata como todos estamos próximos e confirma uma esperança.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 07/07/2004