Quando aqui tomei posse, o Acadêmico José Sarney, no discurso de saudação, quase me estraga a festa e a alegria. Trouxe à lembrança o costume, dentre os elogios da tradição das boas-vindas, de aplicar algumas alfinetadas, coisa leve, para limitar as minhas glórias novas da imortalidade. Fiquei gelado.
Acredito que deixou de lado a ameaça dos reparos, premido por Marly – não desejosa de ver o seu compadre fissurado no júbilo.
Mas do Acadêmico Alberto da Costa e Silva devo expor alguns malogros, para depois cuidar das justas loas.
O nosso novo sócio foi um desastre, no colégio, como jogador de vôlei e futebol. Nem para goleiro ganhou escalação. Também foi recusado como parceiro no tênis. Deram-lhe, quando muito, uma vaga à mesa de pingue-pongue.
Igualmente desastrosas as tentativas de ginasta. No canto orfeônico, então, foi aí um horror de desafinado.
Os professores, no entanto, logo descobriram nele as galas da oratória. Diante das capitulações, era essa a composição vitoriosa. Tanto é assim, que as senhoras e os senhores acabam de escutar uma obra-prima, escrita e dita, a expor a nu e cru a desvantagem em que me encontro. Justifica-se, portanto, esta tentativa de compensação ao revelar alguns insucessos de Alberto da Costa e Silva, poucos, reconheço, porém categóricos.
Cumprida a tradição das alfinetadas, passemos a cuidar da palavra, já que estamos na Casa da Palavra. A palavra nos toca e nos tange. Exerce sobre os acadêmicos o fascínio feminino do claro enigma e da obscura transparência. Excita e entorpece. Inquieta e consola. Faz-nos cativos de sua força e sedução.
A palavra, semente da linguagem humana, é a credencial, única e bastante, que aproxima e identifica o escritor com a Academia.
Não há dificuldade em entender.
Entregamo-nos ao serviço e ao ritual exercício da palavra, em litúrgica reverência ao mistério e ao feitiço vocabular. Herdamos o gosto do desafio do simbólico, que se mostra-esconde na forma verbal significante e se entretece, sinuoso, na costura sintática dos enunciados.
Somos todos irmãos de ofício: o ofício da palavra.
A palavra é o verbo bíblico, no qual se encerra a ideia primordial de todos os seres criados e que encontramos no início de tudo, como instrumento do querer e do poder divino, registrando no Gênesis a criação do mundo.
Bergson acredita que a palavra representa o ponto máximo de extensão e projeção da consciência humana.
Esta noite é, novamente, do ofício da palavra. Para vos receber, Sr. Alberto da Costa e Silva, o ofício é um santo ofício. Trata-se de saudar alguém que realizou em toda a vida a arte de fazer que as palavras o obedecessem a vida toda. Sois um “senhor de obediências”. Sois homem da palavra e de palavra.
Vieira, o padre imperador do dizer de Fernando Pessoa, ensinou que ao nascer somos filhos dos nossos pais, mais tarde, das nossas obras. Aqui chegais filho de Creuza e Antônio e filho de vossas obras de escritor consagrado.
Ainda que não houvesse o compromisso, é claro, cumpris agora o sonho do velho Da Costa e Silva.
Ele disse, na “Oração Silenciosa”, que não quisestes há pouco recordar na íntegra, por qualquer acanhamento, mas que o faço muito contente:
Sou tão feio, Senhor, e meu filho é tão lindo,
que ele o deve notar, às vezes, me sorrindo...
Fita-me assim, Alberto, e o olhar perscrutador
dirá que vivo em ti, como o aroma na flor.
Reflori em teu ser, que o meu sangue revela,
para viver em ti uma vida mais bela.
A ânsia crepuscular deste sonho possuis,
nas clareiras de céu dos teus olhos azuis...
O sol te acenará dos longes horizontes,
e eu hei de despontar onde quer que despontes.
E, contigo, serei tudo que sonhei ser,
redivivo e imortal no esplendor do teu ser!
Flor do meu coração, ó meu lírio entre espinhos,
a vida é tão incerta e há tantos maus caminhos...
Mas, ao olhar-te, medito: “Onde a Fé? Onde o Amor?”
e murmuro, depois, sem que o possas supor:
“Guia o meu filho, que é tão lindo, ó meu Senhor!”
Repito que chegais aqui sob as duas estirpes, a da mente e a do sangue, também como exemplar de uma respeitável estrutura familiar, para cima e para baixo.
A fixação no passado, presente em toda a vossa obra, explica o canto aos netos. O poeta de As Linhas da Mão promove uma constante volta à meninice, daí Miguel Sanches Neto ter dito que “a sua fórmula é envelhecer ao lado da infância, e, não, ser uma criança para não envelhecer”.
Ele próprio, o poeta, é quem verseja:
Vou pedir a meu pai
que me esqueça menino.
Ou diz:
Repara, Miguilim, (...) o que é menino
não chega a velho jamais, não adoece
de seriedade, não se pui, não passa,
não usa paletó, nem põe gravata.
Ou mais:
Põe as mãos nos joelhos dos dias. Pede ao tempo:
– Lava a infâmia do espelho.
Outros mais:
E me revejo menino.
Caminho pelas ruas da infância a minha pátria.
Além deste arremate:
Ao menino que fui tudo foi pago.
O novo acadêmico é um poeta com o olho no retrovisor, tecendo sempre, valorizando a trama de várias semânticas.
Vossas memórias de infância parecem tão frescas que nem memória de menino, novinhas quase cruas de tempo, como se tudo fora simples rememorações do ontem vizinho, mescladas também de ídolos como o Capitão Marvel, o Superman, o Príncipe Submarino, a Tocha Humana, ao mesmo tempo que reconhece o quanto lhe foi útil a História da Literatura Universal, de John Macy.
O poeta e o memorialista vão entrando pelo tempo, vasculhando e soprando poeira. Mas sem nada de lacrimoso, mesmo ao se deparar com o amargo. Não é de nostalgia que vive. Sabe é tirar dali formas de sonho, compreensivas com a saudade e os enigmas.
Harmonizador de desenhos e cores. Seu tempo não esmerilha, pois tem jeito de conservante. Vossas poesia e prosa não se voltam ao passageiro instante, a menos que a circunstância fique por não abandonar a lembrança.
Antônio Carlos Villaça observou com a sua costumeira proficiência: “Alberto da Costa e Silva preferiu sempre a exigência à facilidade.”
O belo livro de memórias, Espelho do Príncipe, que suspeito seja entre todos o mais do vosso agrado, não é mero relato. É pergunta e é achamento. É diálogo com a vida. Explicação de rotas e, ao seu modo, nova espécie de “Livro dos Porquês”. É livro de sociomemória.
Só alguém com grande visão sociológica, que é o vosso caso, poderia nessas reminiscências reservar justo espaço para aquela coceirinha de “bicho-de-pé”; para as odisseias de uma viagem de caminhão nos caminhos poeirentos do Nordeste; para as expressões regionais do tipo: “capiongo”, “pexote”, “mouca”; para o mundo que girou ao redor de mercearias e farmácias interioranas ou de bairros, do comércio ambulante que passou à porta das casas de famílias remediadas; dos modos dos homens e das modas das mulheres naquele nosso mundo.
Digo nosso mundo por vos compreender muito mais homem do Setentrião, aquela região que pôs suas digitais em tudo que é vosso, do que dos espaços meridionais de São Paulo, onde nascestes.
Não quero que o raizame de décadas de nossa amizade domine esta fala, mas sei que do mesmo modo que naquele memorial são exatas as dissertações sobre o banho de chuva, a dimensão das revistas em quadrinhos, do seriado no cinema, a broca do dentista, o rádio de galena, a espinhela caída, o bolo de comida amolegado por mãos de amas, o escanchar-se em cavalos, o olho-de-seca-pimenteira, também é clara e clarividente a vossa inconformidade com o homem insultado pela miséria, permitindo-vos a reação indignada tal qual a de um filho da região.
O capítulo do que seja regional nordestino – no âmbito nacional – ou regional brasileiro – no plano das avaliações internacionais – não é em vós um capítulo de pessimismo, mas declaração de amor-próprio.
As memórias são especulação sociológica sem se perder em miudezas, ainda que trate de coisas miúdas. É que em tudo há um sentido de grandeza. Por isso, a marcha do íntimo ao formal é realizada sem forçar conclusões. Tudo tem a naturalidade de um homem sincero.
Dessa sociologia das intimidades, o autor também chega ao institucional. Foi assim que, ao se reportar aos partidos políticos, UDN e PSD, descobri que éramos correligionários. Do glorioso PSD, é claro...
Mas esse homem que põe a sinceridade na rememoração num patamar muito alto, em menino já “pressentia que cada um de nós tem dentro de si uma exigência de pureza e que é preciso dizer-lhe sim, e sim, e sim, e muitas vezes, sim, e para sempre, sim, ou, no minuto da morte, não teremos de nós senão a ausência”.
A contenção do poeta que não se extrema deve ter servido às cautelas e também às eficiências do diplomata, cioso nas análises políticas e na avaliação da administração pública, que põe ao lado dos diagnósticos a sugestão das terapêuticas.
Usastes a Cultura para aliciar na Diplomacia. Esta, exercitastes sem salamaleques, mas com educação, com altivez e sem bravatas, com ironia e mordacidade mas sem grosseria e perdularismo. Sem deixar de, se necessário, forçar o tom no combate limpo.
Assim foi na Secretaria de Estado ou em missões em Portugal, Paraguai, Colômbia, Espanha, Nigéria, Venezuela, Itália e Estados Unidos.
Assim tem sido nas lições que passais aos filhos, genro e nora, diplomatas. Assim tem sido na sumarenta produção de textos que fazem dos vossos trabalhos no plano da ciência e da arte políticas um justo orgulho do Itamaraty.
Só que o diplomata não briga com o escritor. Senão, vejamos. Inspecionando uma repartição do nosso Serviço Exterior, produzistes esse primor lítero-administrativo que, sem poder confessar como o obtive, não posso sonegar ao conhecimento de quantos aqui vieram festejar-vos:
Na sala de espera acanhada, atravancam-se, sobre um carpete velho e sujo, mesas e cadeiras igualmente velhas e sujas. Nas paredes, colam-se papéis por todo os lados, e tudo traduz-se em desalinho. A própria porta de entrada já se abre sobre a mesa de uma das recepcionistas. A outra recepcionista fica no fundo da sala. Entre elas, alinham-se cadeiras de um amarelo manchado e estende-se mesa longa e baixa, lascada em vários pontos, onde são atendidos os que buscam o Consulado. Sentam-se eles numas cadeiras de molas balouçantes, que ameaçam despencar para um dos lados (eu próprio quase caí de uma delas). Senti-me triste e envergonhado com o que é, em última análise, uma sala de visitas e vi brasileiros a olharem ao derredor com estupor.
E no arremate:
Enquanto isso não se dá, recomendamos ao Cônsul-Geral e a todos os funcionários que fizessem um mutirão para retirar das salas tudo o que se considerasse imprestável ou estivesse fora de uso, a fim de que as sardinhas pudessem acomodar-se ao tamanho da lata. Pedimos que descolassem a papelada presa às paredes por fita colante. Que não se obstruíssem as saídas de emergência. Que se fizesse uma revisão do aranhol de fios. Que se emprestasse – e não ignoro a contradição intrínseca na proposta – certo método ao caos.
Tudo foi reformado, e deu-se ordem ao caos.
À Casa de Rio Branco, continuais a servir com uma obstinação de quem se porta a mando de um quase deus. Ninguém mais zeloso dessas tradições de que tanto se orgulha o Brasil.
De minha parte, gosto de dizer que o agir daquela Casa é gesto e voz de que o Brasil sempre se tem honrado, nas suas vertentes de patriotismo e inteligência.
Somente algo se sobrepôs à vossa fidelidade ao Ministério de Relações Exteriores. Foi para o vosso mistério interior que se chama Vera. A vera força, a vera dedicação, a vera inspiração, a única vera Vera.
Para ela, dissestes na fundura do afeto:
... Usa o meu coração
para nos esconder, como os olhos às pálpebras,
do cansaço do tempo, do bolor nos retratos.
Que declaração de amor pode ser mais inteira, mais oferta?
Tem mais:
... e amar-te sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.
E ainda:
Dizer jamais de nós
senão o certo:
o céu
e o campo aberto.
Por essas e outras, é que José Guilherme Merquior observou com razão que o poeta de “Ao Lado de Vera” pertence “à raça dos contemplativos ardentes”.
Certo dia, vi o novo acadêmico – Vera também –, os dois em apoteose africana. Vestido de rei nigeriano ou coisa equivalente, pletórico de poder e fé. A túnica comprida, o barrete e o bastão de comando. Tão formoso como agora, acadêmico, ou com o fardão de diplomata, com que foi presenteado, ainda jovem secretário, pelo seu colega o embaixador Vasco Leitão da Cunha.
O autor de A Enxada e a Lança bem mereceu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Ifé, na Nigéria. Ninguém pode pretender conhecer de África sem o conhecimento dessa obra fundamental, construída com inteligência crítica, obstinação de pesquisa, graça literária na redação e a impressionante abonação de quase mil obras. É o mais importante estudo, no gênero, que se conhece.
Alberto da Costa e Silva, ao escrevê-lo, compreendeu bem a lição de Ortega y Gasset: “a alma de um povo só é inteligível quando se confrontam suas palavras e suas obras”. Essa mesma atitude, pude testemunhar acompanhando-o em visitas ao Museu do Ouro, em Santa Fé de Bogotá, ou em expedição um seu tanto piedosa, às ruínas de Conímbriga, ou ainda à biblioteca da Universidade de Coimbra. A mesma disposição para o enlace.
Disso tudo, a constatação de que compreendeu bem as clarezas e ambiguidades num mundo de relações intensificadas e soube escoimar a banalidade do valor, o mero localismo do abrangente, a imitação do verdadeiro. Nem homogeneização, nem tribalismo.
Isto porque o exercício da vida para ele cumpriu-se em ler, para entender, e escrever, para explicar. Nas entrelinhas, o trabalho derivando do que aprendia, do que ensinava. Em função dessa realidade, sempre esteve pronto ao espetáculo da vida.
A vossa obra, Acadêmico Alberto da Costa e Silva, tem grande protagonismo na Cultura de Língua Portuguesa. Desejo referir, apenas para exemplificar, a antologia da Poesia Lusitana, que organizastes com Alexei Bueno. Nada da mera preferência aos mais próximos do vosso espírito e logrando não ausentar da seleção uma visão crítica. E também mencionar o magistral pequeno ensaio sobre “Gonçalo Mendes Ramires, Prazeiro na Zambézia”, farto de História, de Sociologia e da demonstração de escritor literário que produz Crítica Literária inteligível, agradável de ler.
Já no campo da crônica, O Vício da África se de um lado aponta o pesquisador, de outro não esconde o cronista da circunstância. A esse propósito, vossa amiga, Maria do Carmo Vilaça, “baronesa de Limoeiro” e dançarina de frevo, não concorda muito com a tese, que defendeis, acerca da importação da Costa do Marfim, das matrizes daquela acrobática dança. Controvérsia que, hoje, fica para outra hora.
Falando de nossas origens, diz Alberto da Costa e Silva: “Jamais saberemos o que realmente fomos, se não desfiarmos a História Brasileira pelo menos desde Afonso Henriques, na praia ocidental da Península Ibérica, e desde Nok e a expansão dos bantos, no continente que a nós temos defronte.” Noutro de seus escritos, esta nota explicativa do gilbertólogo em que se transformou: “Meu interesse pela África surgiu nos meus dezesseis anos, com o deslumbramento de Casa-Grande & Senzala”. O exemplar fora adquirido na livraria “A Futurista” – veja-se o nome – que existiu na Praça Saens Peña, aqui no Rio.
O ofício de diplomata favoreceu-vos o conhecimento da África, sobretudo, como referis, “por ser sempre trabalhoso e absorvente”, pois a vossa marca é a da responsabilidade.
Do travejamento das missões que tivestes, resultou uma aliança da inspiração com a expiração do pesquisador mas também do poeta. Por isto, chegais aqui como um múltiplo. Bernardo Carvalho tem toda razão em dizer que a verdadeira Literatura não opera por estreitamentos. São muitas e simultâneas as etapas do vosso destino. Senão, vejamos. Inventor: o poeta; Investigador: o africanólogo; Memorialista: ver Espelho do Príncipe; Regionalista: o semipiauiense; Cidadão do Mundo: o embaixador; Artista plástico: o desenhista de formas repletas de singularidades – herança do sangue paterno – alongado nas dedicatórias ilustradas, como em fidelidade a Fernand Léger, que lembrou ser preciso enfeitiçar os muros, além do zelo pela arte gráfica dos próprios livros ou nas ilustrações em álbuns de meninas, onde é incomparável o arlequim que fizestes para Taciana Cecília, minha filha.
Tudo isto sintetizado num cultor e aperfeiçoador de estéticas e num contumaz praticante da ética.
Foi à conta dessas intimidades com a estética que vos conheci. Fostes a Pernambuco tratar de uma exposição da coleção Abelardo Rodrigues, que acabou por ser impecavelmente linda, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Andáveis pelos caminhos de homens, datas, fatos e feitos da minha terra com ostensivo à vontade, fosse com Pereira da Costa ou Brennand, com os “coronéis do PSD” ou Lula Cardoso Ayres, com Bandeira ou João Cabral, com Mauro Mota ou o Mosteiro de São Bento, em Olinda. O pai, que morara no Recife, reconheceu o quanto Pernambuco lhe foi inspiração e ânimo e o quanto a Faculdade de Direito, onde ensinara o parente Clóvis Beviláqua, lhe sugerira de civismo. Gilberto Freyre, mais do que um mestre, já era a maior de vossas intimidades, em vida e obra, tal como aconteceu para todo o sempre.
Mas o que me encabulara naquele jovem diplomata era o gesto de esfregar na testa, na fronte, o copo com gelo, onde restava abandonado algum drinque.
Que diabo seria aquilo?
Era a enxaqueca.
Afinal de contas, Espelho do Príncipe começa assim:
O menino sentia o sol na pálpebra. Doía-lhe a cabeça. Era como se uma colher escavasse a órbita espicaçada pela luz, para trazer na concha, o olho. (...) Tudo que soasse, ainda que um sussurro, espancava-lhe as orelhas, trovejava dentro dele.
Duvido que algum compêndio de medicina explique melhor essa sintomatologia. Duvido. Ainda que, no vosso caso, a enxaqueca tivesse alguma coisa de metafísica.
O menino do livro de memórias tinha de dois para três anos, e era a enxaqueca a mesma doencinha chata do nosso conhecimento tanto tempo depois, no Recife. O diplomata esfregava o copo nas têmporas, mas não perdia a graça com que conversava, nem os bons modos jamais esquecidos. Ia assim até que alegre ouvisse, “dentro dele o assovio da ausência da enxaqueca”.
Outro dos cacoetes do novo acadêmico é o de não se servir de bichos de pena. Seja o fidalgo faisão, seja o proletário inhambu. De pena, nada. Nem no mais disfarçado e bem elaborado prato de banquete ou de ceia íntima.
Por isso, deu voltas às mesas no labor diplomático, fingindo como bom poeta, mas sem comer, à simples desconfiança de que no prato camufladamente estivesse um bicho de pena.
Deixa uma das páginas mais dramáticas da Literatura Brasileira, no descrever o horror que lhe causou, ainda menino, o abate de galinha para regalo de comensais à mesa da família.
Costumo dizer que nela está uma força pungente do mesmo estofo daquela de mestre Graciliano Ramos, ao narrar a morte da cachorra Baleia, em Vidas Secas. São dois momentos de beleza trágica e precisão descritivo-estilística que ficarão para sempre.
Como para sempre ficou aquela restrição na palatabilidade do nosso poeta, que carrega com ele um outro fadário, esse da barba, que embranqueceu!
É que, talvez não conheçam todos, a barba vem do medo, do pânico pelo qual passou em terremoto na Venezuela. Depois disso, adotou-a. E com proveito. O amuleto funcionou. Não se encontrou nunca mais, nas andanças mundo afora, com quaisquer graus da escala Richter. E lhe veio outra vantagem. O nosso colega Carlos Heitor Cony acha que a barba lhe dá o perfil ideal, pelos traços de monarca-sábio, para selo postal da Bélgica. O porquê de belga, Cony não explica.
Um ponto a mais de vossa fortuna acadêmica é o de suceder a Carlos Chagas. Esse nosso saudoso confrade esbanjava aquilo que os ingleses – sem que tenhamos um tipo de expressão-síntese igual – chamam de gallantry.
Carlos Chagas era a mais bela das convivências de toque aristocrático dos últimos tempos desta Academia. Aristocrata a serviço dos desafortunados. Aristocrata, por integrar grupo familiar com as volutas de beleza das mulheres e de ângulos retos na compostura cívica dos homens, com o brilho de Melos Francos, de Nabucos, além dos Chagas. Comprometido com os despossuídos, pelo labor científico de reduzir os males à saúde, nomeadamente, da gente pobre. O Carlinhos, como Maria do Carmo Nabuco o tratou sempre, teve compostura acadêmica, nos limites que sempre se impôs, o da lealdade e o da dedicação. Era tão bom ouvi-lo dissertar sobre a revolução que provocou na outra Academia, na qual foi performático, a Pontifícia. Falava de papas com intimidade de dar inveja. Mas sem vulgaridade, nem exibicionismo. Era um igual a cardeais na fé e naquelas galantes meias bordeaux, que só nele podiam cair tão bem!
Saudades do Carlinhos, não é, Annah?
Neste ano, assinalamos o cinquentenário da morte de Da Costa e Silva. Sei que toca a todos nós o dever de registrar a data, para nos juntarmos ao compromisso cultural de continuar a divulgá-lo. A vossa posse nesta Casa de Machado de Assis contempla esse enlace.
“A memória é a sede da alma”, disse Santo Agostinho. Balzac completaria: “A glória é o sol dos mortos.”
Os valores sonoros do poema “Saudade”, que diz “Saudade! Asa de dor do Pensamento!”, são para certos filhos que viram a partida dos seus maiores e para pais desafortunados que perderam filhos, exatidão de dor em corações arranhados, pois como disse Cecília Meireles: “Tudo começa quando se acaba.”
Asseverastes, Acadêmico Alberto da Costa e Silva, que o poeta, quando escreve alguma coisa e se sabe que alguma-coisa é esta, intensifica-se a emoção de quem o lê ou o escuta. Tendes razão. O bom poeta escreve dentro da vida. Isto é o que o distingue do mero poeta.
Pois bem, vestindo as lágrimas e de dentro da vida, como remate adequado ao final desta vossa noite de glória, quando as palmas deste salão haverão de coroar vossa entronização cultural, vamos todos escutar o vosso pai:
Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra...
Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...
17 novembro de 2000