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Pio 9º e João Paulo 2º, o drama de dois papas

 

Escrevo esta crônica antecipadamente. Quando sair publicada, talvez já se conheça o nome do novo papa -assunto obrigatório dos últimos e próximos dias. Lendo a diversidade de matérias na mídia, a nacional e a internacional, pesquei um detalhe sem importância. Apesar de agnóstico, sempre conservei pela igreja a gratidão pelo que me ensinou e o respeito que ainda me causa.


O detalhe é de fato irrelevante. Li que o pontificado de João Paulo 2º foi o terceiro mais longo da história, vindo depois do de Pedro e o de Pio 11. Quanto a Pedro, não deixa de ser uma gentileza considerá-lo papa. Na realidade, foi mais do que isso, tendo recebido, segundo os evangelhos, a missão de chefiar a igreja nascente, missão que lhe foi conferida pelo fundador do cristianismo.


O próprio nome, "papa", que significa "pai" em algumas línguas, já foi explicado como sigla de "Petrus Apostolus, Princeps Apostolorum" -Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos. Seu principal título foi mesmo o de apóstolo, o mais próximo a seu chefe, o mais veemente e, em termos humanos, o mais surpreendente.


Quanto a Pio 11, o engano deve-se à numeração, tradicionalmente feita em algarismos romanos. O erro está no "Pio XI", quando o certo é "Pio IX". O primeiro governou a igreja de 1922 a 1939, um pontificado de 17 anos.


Pio 9º, sim, foi papa durante 32 anos, de 1846 a 1878, num período dos mais movimentados do século 19. Giovanni Maria Mastai Ferretti, em que pesem diferenças de tempo, estilo e personalidade, aproxima-se de Karol Wojtyla num ponto: o da perseverança na linha dura, em termos de dogma e moral, embora no resto seja o oposto do papa recentemente falecido. Não foi popular nem querido, como João Paulo 2º. Chegou a ser odiado.


Enfrentou uma época em que o racionalismo e o culto da ciência e da modernidade repudiavam qualquer tipo de dogmatismo. No plano político, que, no caso dele, acabou sendo o plano pessoal, teve pela frente a unificação italiana, quando Garibaldi e Cavour, um com as armas, outro com os acordos internacionais, o reduziram à situação de prisioneiro, condição que ele transmitiria a seus sucessores, até justamente Pio 11, quando o Estado italiano reconheceu a soberania do Vaticano pelo Tratado de Latrão, de 1929, assinado com Mussolini -que, aliás, detestava o papa de plantão.


Se foi dramática a luta contra o espírito da sua época (a Alemanha também se unificava e 1870 foi um ano marcado pela guerra franco-prussiana), Pio 9º teve a contestação de católicos que dele exigiam aberturas na moral e no dogma, tal como aconteceu agora, com João Paulo 2º. Produziu dois documentos que foram considerados peças medievais: a encíclica "Quanta cura" e o realmente medieval "Syllabus", com a condenação de tudo o que o progresso da época colocara na mente de seus contemporâneos: naturalismo, racionalismo, socialismo, comunismo e, sobretudo, liberalismo. Afirmou ser impossível a reconciliação do papado com a sociedade moderna -evidente que a sociedade de seu tempo. Cada artigo do "Syllabus" terminava com o terrível bordão: "Anathema sit".


Um autor, Zizola, definiu seu pontificado como apocalíptico, "incapaz de discernir no Manifesto de Marx, de 1848, publicado dois anos após sua eleição, nada além da anarquia e desagregação intelectual, mantendo-se cético em relação à igualdade econômica e social".


Convocou o Concílio Vaticano 1º e, de tudo isso, emergiria o dogma da infalibilidade papal em matéria de dogma e moral. Para o jargão de nossa época, poderia ser classificado como um dinossauro. Aproximá-lo de João Paulo 2º mereceria também um anátema. Mas a aproximação existe. Nos anos conturbados de seu pontificado, Mastai Ferretti teria de lançar uma âncora que amarrasse o que se chamava de "nau de Pedro" no mar da história, que se agitava com idéias e ideais que formavam um tsunami devastador. A seu modo, e de forma bem mais suave, João Paulo 2º fez o mesmo, lançando a mesma âncora num ponto preciso da história, esperando que o tsunami passasse, deixando estragos, é certo, mas não levando a nau para o abismo da história.


Sua luta não foi dramática como a de Pio 9º. Ele preservou o dogma e a moral que constituíam a sua herança espiritual, as cláusulas pétreas de seu compromisso com a instituição 2.000 vezes secular que aceitou dirigir. Mas se abriu no campo social com um estilo assombroso, a que não faltaram os exageros da comunicação de massa.


Seu sucessor encontrará a igreja imobilizada no campo dogmático e moral, amarrada pela âncora de ferro que João Paulo 2º lançou ao mar de seu tempo. Sua missão principal, como a de seu antecessor do século 19, foi a de evitar o naufrágio. E isso ele conseguiu, de forma até brilhante. O novo papa assumirá o comando da nau de Pedro um pouco avariada. Providenciados os reparos, ele tentará conduzir o barco pelo mar da história.


 


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 22/04/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 22/04/2005