Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A humanidade na praça

A humanidade na praça

 

O mundo viveu nesses dias a condição inédita de um consenso universal em torno da morte de João Paulo II. Mais do que qualquer protocolo de aparências entre a emoção e o longo preparo para o desfecho em que se fez o preparo à perda do pontífice, neste misto único de despedida e alegria quase radiosa na massa comprimida entre as colunatas de Bernini. O Arcebispo Camilo Ruini, de Roma, deu o mote desta transposição quase luminosa no dizer que João Paulo II já "tocava o Senhor". E a mobilização de todo o mundo dobrou e redobrou a peregrinação única dos tempos modernos que, afinal, socou-se junto à fachada de Miguel Ângelo, a fortalecer o recado do Papa ao mesmo tempo sem concessões e congraçador dos caminhos do mundo. Indiscutível o portento na quebra de escalas nas boas avalanches da humanidade, na materialização única do seu peso, e de uma voz universal.


Foi pastoral e não de terror, nem de violência política a maior imagem que já circulou o universo contemporâneo. Explica-a o Papa, do dom mediático-limite, ou a mídia seduzida pela força do Pontífice, na plenitude nova do gestual para a civilização do nosso tempo? Remate desta escalada do último meio século em que a figura do Papa dispara da reclusão hierática de Pio XII, abre-se à bonomia de João XXIII, e se encontra com as tensões da modernidade na cabeça do intelectual aberto à angústia de agora, como Paulo VI, para talhar-se à efígie de um pastor da palavra e do rigor esperados do anúncio, de uma Igreja que encontrou a sua solidez definitiva, nos tempos de após a cristandade.


A segurança e a força da bênção, emudecido o Pontífice no domingo de Páscoa importou a virada de página para o mundo dos hegemônicos. Amesquinha-se de repente a "civilização do medo" e a da guerra sem volta do terrorismo, como a cruzada que aniquila toda cultura da paz. E é difícil que as multidões, de retorno do funeral cumprido como uma nova exatidão na confiança dos homens voltassem, sem mais retorno à choça do pânico e dos cenários do mundo começado com os detritos das torres de Manhattam. O encontro da Praça de São Pedro leva de roldão as retóricas do "eixo do mal" ou do conformismo cínico com o mundo da auto -anulação das crenças, ou do fartum da informação irrelevante. Nem paroxismo, nem desordem, nesta massa desarmada de todas as rotas, cativa por horas inteiras à espera do instante transfigurador diante do corpo.


Foram esses os dias também em que, a responder pelo desarme do mundo através do diálogo e do pólo islâmico reuniram-se na Unesco Khatami e Bouteflika, presidentes do Irã e da Tunísia, a dar a partida no desmanche dos fundamentalismos da desconfiança nascidos da cruzada Bushiana. Khatami deixará o poder para constituir uma fundação, a assumir os riscos do diálogo fora da força de Estado. E o fazer tanto em Teerã como em Bruxelas, sede da União Européia, que não se quer uma mirrada ONU, ou um clube de nações do Velho Continente. Bouteflika, também no caminho da mesma derrubada de estereótipos, insiste na diversidade dos islãos de hoje, e da importância do vis-à-vis interno entre o iraniano, o turco e o árabe, o único que estará presente na primeira e revolucionária convocação de Lula, a trazer ao Brasil em maio próximo todo o conjunto das nações desta cultura.


O recado, ao mesmo tempo, em Roma, na praça da humanidade ou de São Pedro, era o do amálgama de uma sociedade peregrina no transbordar ecumênico das suas diferenças, afloradas na espontaneidade de uma consciência popular. Quiçá ela tenha a última palavra, por sobre a máquina política dos Estados, no compreender o que será o plebiscito pela União Européia. Ou seja, por este portento de um novo ator internacional, capaz de se contrapor à hegemonia americana e ao mundo só que nos dita o Salão Oval. Antes da morte de João Paulo II, amorteciam-se as esperanças do aprovar-se a Constituição da entidade que se quer advinda de uma cidadania emergente sobre os egoísmos nacionais. Virão, agora reforçados, os votos pela abertura e pela confiança no futuro, na esteira da palavra básica de João Paulo II, de que não tenha medo este mundo dos homens.


A vigília desmesurada frente aos novos desafios dos seus enlaces maiores não perdeu o seu passo de volta à casa. E não nos esqueçamos que povo na praça, com o funeral do Papa Wojtyla, antes do que viu Roma, só a vira a Europa, nesta mesma Cidade Eterna, no 15 de fevereiro de 2003. Lá como em Barcelona, Madrid, Paris ou Londres, a sociedade mostrou a sua cara também numa manifestação universal contra a guerra do Iraque e a manipulação política do nosso tempo. Marchou, então, sem dúvida, este mesmo povo que tocou a humanidade nesses dias, tal como o Pontífice "tocara o Senhor" nas últimas horas das janelas acesas do Vaticano.


 


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 22/04/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 22/04/2005