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Histórias de leitores

 

Marcelo


“Quando a alma sangra por algo que sabemos que machuca, não adianta nem culpar, nem perdoar os outros.”


COM BASTANTE FREQÜÊNCIA, RECEBO histórias de leitores; a seguir, reproduzo duas que vieram de Portugal e, segundo seus autores (citados aqui), foram encontradas no ciberespaço.


O espinheiro e o perdão (Ana Margarida)


Um homem caminhava por uma estrada, contemplando a beleza a sua volta, quando sentiu que havia sido ferido. Olhando para o lado, notou que um espinheiro cortara sua perna.


Mas a paisagem era tão linda que ele resolveu não dar muita importância ao fato e, voltando-se para a planta, murmurou:


- Você está perdoada.


Horas depois, outro homem caminhava pela mesma estrada, também contemplando a grandeza de Deus no pôr-do-sol diante dos seus olhos, quando o mesmo espinheiro o feriu. Ele apenas olhou o espinheiro, limpou o sangue que escorria, e seguiu adiante.


Um anjo, que assistia a tudo, foi até o Senhor e comentou:


- Hoje vi um santo que perdoou um espinheiro. E vi um homem sem coração que também foi ferido e nada disse.


- Pois você está completamente enganado - respondeu o Senhor. - Claro que o primeiro é um homem de bem, mas o segundo, além de santo, também é um sábio.


- Mas como? - insistiu o anjo, surpreso com a resposta do Todo-Poderoso. - Ele não teve a grandeza de dizer nada, apenas seguiu seu caminho!


Deus interrompeu o anjo:


- O filho que é injustamente repreendido pelo pai, mas entende que o gesto foi fruto de um amor talvez excessivo, não tem necessidade de perdoar ninguém, apenas de aceitar o que aconteceu. Desta maneira, a ferida não fere e o perdão não humilha - disse, continuando. - O espinheiro nasceu para usar seus espinhos. Ainda que quisesse, jamais poderia perfumar o ambiente ao seu redor. O primeiro homem, ao sentir a dor da picada, atribuiu a culpa ao espinheiro, e como era puro de coração, o perdoou.


- O segundo homem também se machucou. Mas como sabe que todos os espinheiros são assim, não se sentiu ofendido. E como nada tinha a perdoar, não perdoou.


E concluiu:


- Quando a alma sangra por algo que sabemos que machuca, não adianta nem culpar, nem perdoar os outros.


O sonho de Karina (Delfina Dias)


Desde pequena, Karina queria ser uma das principais bailarinas do Ballet Bolshoi, em Moscou.


Seus pais tudo sacrificavam para que a filha pudesse realizar seu sonho. Os rapazes já tinham se resignado: o coração da moça tinha lugar somente para o balé.


Depois de muito lutar, Karina conseguiu uma audiência com o diretor do Bolshoi, que estava selecionando aspirantes para a companhia. Dançou como se fosse seu último dia na terra, colocou tudo o que sentia e que aprendera em cada movimento, como se uma vida inteira pudesse ser contada em um único passo.


Mas terminou reprovada. Na viagem de volta a sua aldeia, em meio às lágrimas, imaginou que nunca mais aquele “não” deixaria de soar em sua mente. Mas como era a única coisa que sabia fazer, continuou dançando. Dez anos mais tarde, Karina, já agora professora, criou coragem para ir à apresentação anual do Bolshoi em sua região.


Sentou-se bem à frente e notou que ali estava o homem que a havia reprovado. Após o concerto, aproximou-se dele e contou-lhe o quanto lhe doera, anos atrás, ter ouvido dele que ela não seria capaz de ingressar na companhia.


- Mas, minha filha... Eu digo isso a todas as aspirantes - disse o diretor. - Perdoe-me, mas você nunca poderia ter sido grande o suficiente se foi capaz de abandonar o seu sonho por causa da opinião de um estranho.


 


 


O Globo (Rio de Janeiro) 24/04/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 24/04/2005