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O poeta e seu apocalipse

 

Vejo, na poesia de Luís de Miranda, uma longa caminhada em busca de verdades, cada uma delas mostrando o caminho de um apocalipse em que há profecias, quedas, recuperações, gritos, momentos de êxtase. No fundo, este longo conjunto de versos, numerado de um a 200, é, na realidade, um só poema, com interpretações, apelos, tormentas, visões, lutas contra anjos e demônios, abismos, ao mesmo tempo em que a memória interfere, o coração bate e o poeta mergulha na palavra, ceva a palavra, sai do mar das palavras com feições de quem, afinal, compreendeu que podia voar e, de cima, dominar as frases que, em baixo, continuadamente se agitavam, em ondas, muitas vezes revoltas, outras mansas.


Assim vejo Luiz de Miranda escrevendo os versos aqui reunidos, erguendo um só poema sem quebra de sons, a partir do nascimento, naquela casa de barro à beira do rio Uruguai, onde a memória começa a criar versos. Sendo um apocalipse, é também um poema autobiográfico. Por muito que se pense e se diga ser todo poema autobiográfico, raramente chega um deles a pegar o autor pelo gasnete e colocá-lo como centro de uma história que, pisando sobre palavras, tenha o ritmo de um rio. O rio, o mar, a terra, o vento, o sol, o sorriso da bem-amada, a bruma, a rosa, a maré, a lonjura da eternidade, tudo se unindo para o despertar de cada manhã.


Desde menino o poeta sabe que precisa morder a carne viva da paixão, tem de manter sua fidelidade à palavra e de suportar o peso da treva e o inesperado vazio do silêncio. Também sabe que deve entender o nervo das horas que se emaranham nos seus movimentos e nas suas tentativas de avanço, preso sempre ao "longínquo fremir do verbo amar".


Acima de tudo paira o tempo, que se fecha ciumento sobre qualquer esforço de liberdade. Apesar disto, os versos se encadeiam abrindo velozmente as fissuras de cada esperança.


"Nunca mais seremos os mesmos" é uma longa e minuciosa cosmogonia que também resvala para uma cosmologia, a primeira tida como parte da segunda, no sentido literal de estudar a origem e formação do mundo e a segunda apresentando a narrativa dessa origem e do lento desenvolvimento que veio dar no que somos, no que fazemos, no que representamos, como produto de um duro caminho que veio da animalidade à poesia.


Colocar essa cosmologia - a que se refere à narração de uma presença - serve de base a uma autobiografia poética fundada na busca de uma linguagem e na aceitação de um ritmo.


Poema narrativo da mais alta qualidade, "Nunca mais seremos os mesmos" inicia uma caminhada com a certeza de que "tudo é memória" e vai, trezentas e tantas páginas mais tarde, completar um "livro que tece" e, "limpando um velho retrato da infância", vai ainda em busca de uma palavra que tudo explique.


Numa cosmologia mansamente narrada, com base nos dias da infância, que "duram para sempre", vislumbra o poeta os mais diversos aspectos do avanço que atravessa noites frias, numa contemplação do que passou e do que vai chegando, as brancas mãos de outrora debruçadas sobre a tristeza do mundo. De vez em quando, fixa-se geograficamente:


"Como essa rua triste

de Porto Alegre

é eterna,

e basta-se."


O poeta avança na sua história, no seu descobrimento de quem "funda na rebeldia / um país e uma poesia". Como um Quixote, o poeta visita os lugares da terra, a cavalo ou sem ele, mas o tempo foge, e foge desde que Horácio proclamou que ele fugia no seu "fugit tempus", mas insistiu em que o poema está no dia que passa, e aí já o poeta alcança a etapa número 50, com suas horas de adeus, que se repetem.


O poema não para, pois chega ao número 100, quando o mar aparece, e o poeta pede que, ao morrer, lavem seu corpo na água santa do mar.


O livro é uma só narrativa, uma cosmologia única, mas vai e volta, em ritmos que se fixam no Rio de Janeiro, que regressam a uma cidade cuja ternura é mais antiga, e a ela

dirige um cântico pedindo outro:


"Canta, cidade, canta

a voz santa de tuas ruas,

deixa o amor tomar conta

daquilo que Deus aponta"


indo terminar com dois versos. "Canta, Porto Alegre, canta / a voz santa da eternidade." Ao longo de sua história intui o poeta ainda que o mundo agoniza e ninguém sabe de nada. Dedica ainda seus versos à história política do Continente, às lutas de seu tempo de vida que vão culminar no poema número 142, em que, depois de dois versos - "A luz que me conduz branca", "a luz que me aprisiona branca" - se enfileiram mais 20 vezes a palavra "branca" e o poema vai terminar no canto número 200 com o "Verbo verde que verte vórtices novos" e com a confissão do poeta que desejou narrar em versos a própria vida numa obra que não tem similar no Brasil, uma obra que é poesia pura, inserida na busca incessante da palavra certa, da palavra que, só ela, pode justificar uma existência. Com este livro ascende Luiz de Miranda à primeira linha da poesia brasileira.


"Nunca mais seremos os mesmos", de Luiz de Miranda, sai sob a égide da Nova Prova Editora.


 


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 26/04/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 26/04/2005