Rádio e TV ligados, não senti a noite passar. A crise política fervia, dizia-se que o presidente iria renunciar, forçado pelos militares que o responsabilizavam por um atentado em que morrera um major da Aeronáutica. Nas primeiras horas da madrugada, um aparente alívio na tensão. O ministério divulgara uma nota em que o presidente pediria licença de seu mandato desde que fossem mantidas a ordem e as instituições.
As atenções saíram do Catete e foram para Copacabana, onde residia o vice-presidente Café Filho, que deveria assumir nas primeiras horas da manhã. Militares, políticos e a imprensa correram para o sol que ameaçava nascer.
Um repórter radiofônico, dos últimos a deixar o Catete, entrevistou um mordomo do palácio que vira Getúlio Vargas já vestido à gaúcha, fazendo as malas, pronto para voltar a São Borja.
O natural seria desligar rádio e TV, tentar dormir algumas horas. Mas os ânimos estavam inflamados na casa de Café Filho, o champanha rolava, políticos e militares ocupavam o microfone, declaravam a nação redimida, a pátria salva, alguns nomes eram lembrados para o novo ministério que se empossaria à tarde.
Um deputado da UDN falava em nova era quando um técnico pediu que o som fosse devolvido ao estúdio. O deputado continuou falando até que o som foi cortado. Entrou a voz de um locutor profissional pedindo atenção, muita atenção: "O senhor Getúlio Vargas acaba de suicidar-se em seu quarto no Palácio do Catete". O locutor não disse "o presidente Getúlio Vargas". Disse "o senhor Getúlio Vargas".
Eu morava num quarto andar, mas foi como se sentisse o chão estremecer, não o chão do meu apartamento, mas o chão do mundo. Para a minha geração, até aquele momento, gostássemos do ex-ditador ou o detestássemos, Vargas era uma coisa doméstica, pessoal, presente em nosso cotidiano, em nosso amor ou em nossa ira. Sua morte era um absurdo do tamanho de nosso pasmo.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) 24/08/2004