Ele chegara ao poder, em 1930, no bojo de uma revolução libertária que iria interromper o círculo vicioso de uma alternância do ''café com leite'', entre São Paulo e Minas, enterrando os ossos de 40 anos do liberalismo republicano, que ele considerava perempto, falido e ultrapassado. Superou várias tentativas para depô-lo: as revoluções constitucionalista de 32 e a comunista de 35, além do putsch integralista de 38. Conseguiu sair de todas cada vez mais forte.
Quando, por exemplo, percebeu que os adversários estavam divididos e radicalizados, executou com mão de mestre um golpe de Estado, no dia 10 de novembro de 1937, que iria conservá-lo por mais oito anos no poder. Em meio à 2ª Guerra, ainda teve tempo para eleger-se imortal, na nossa ABL, no dia 7 de agosto de 1941, na cadeira nº 37, sendo saudado por Ataulpho de Paiva, que, no seu discurso de recepção, disse o seguinte: ''Estais chegando a esta Casa não apenas como um gênio político, mas também como um homem culto, leitor de Zola, Balzac e do suicida (sic) Raul Pompéia, que se matou no Natal de 1895''.
Na tarde de 27 de janeiro de 1943, Getúlio velava no Rio o filho Getulinho, de 25 anos, à morte, vítima da poliomielite. Levantou-se abruptamente e, incógnito, viajou secretamente para Natal, a fim de encontrar-se com o presidente Roosevelt, que estava regressando de uma visita às tropas aliadas na frente africana e que chegara num hidroavião militar, amerrissando no Rio Pontengi, sendo retirado nos braços pelo secretário Harry Hopkins e levado a bordo do navio Humboldt, onde ia almoçar com o presidente brasileiro.
Roosevelt agradeceu a cessão da base de Parnamirim, transformada no ''trampolim da vitória'' para reabastecimento dos aviões rumo à África. Como compensação, Getúlio solicitou a ajuda americana para a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda, que Roosevelt garantiu na hora. Eu era muito criança ainda em Natal, quando, na tarde de 28 de janeiro de 1943, vi e ouvi as sirenes de uma coluna de batedores comboiando seis jipes fechados que levavam Getúlio e Roosevelt no rumo de Parnamirim, para retornarem ao Rio e a Washington.
Pouco antes, haviam acertado o envio de um contingente de 40 mil homens para ajudar as tropas aliadas na iminente invasão da Itália. Nascia então a FEB. Quando a FEB desembarcou no Rio, de volta da Itália, a conspiração contra Vargas estava a pleno vapor. Seus adversários, como vivandeiras, terminaram por bater à porta dos quartéis para cooptar o exército para a tarefa da sua derrubada.
Uma coluna de tanques, que desceu da Vila, sob o comando do general Álcio Souto, derrubou-o no Catete e o exilou, durante cinco anos, em São Borja, depois dos quais foram buscá-lo de volta e ele acedeu aos clamores:
- Levai-me convosco.
Triunfalmente retornou nos braços do povo, eleito a 3 de outubro de 1950, com 3 milhões e 850 mil votos populares. Mas, com uma premonição, declarava aos jornais que receava não chegar ao fim do seu mandato. Nomeou um Ministério de Experiência, que pelo próprio nome já nascia meio morto. Mas, assim mesmo, lançou os Planos do Carvão, de Valorização da Amazônia, da Vale do Rio Doce, do Banco do Nordeste e da SPVEA e os projetos do Seguro Agrícola, do Serviço Social Rural e da Petrobras.
Levado pela mão de Lourival Fontes, nosso amigo comum, fui entrevistá-lo certa vez no Palácio do Catete. Ele tinha acabado de almoçar, estava sentado, sozinho, na varanda dos fundos, soltando baforadas de um charuto e, absorto, olhando a copa das árvores à sua frente. Quis saber qual era o meu jornal e quando lhe disse o nome, comentou:
- Meu jovem, você trabalha num jornal muito valente.
Aí, então, escrevi uma reportagem nesse jornal, a Tribuna da Imprensa, sob o título Vargas, um homem só, do qual a sua família e os seus amigos e auxiliares não gostaram nem um pouco. Vargas, solitário, não tinha um só minuto de sossego: a implacável oposição da UDN movia-lhe uma guerra sem tréguas nem quartel.
Sobrevieram em seguida as agitações no Clube Militar, as acusações contra o Banco do Brasil, a CPI da Última Hora, a entrada e a saída de Jango do Ministério do Trabalho, o ''Memorial dos Coronéis'', a campanha de Carlos Lacerda no rádio e na TV, o atentado da Rua Tonelero, a morte do major Vaz e, finalmente, a bala no coração.
Getúlio ainda tentou evitar o desenlace: na madrugada de 24 de agosto, fez uma reunião do seu Ministério no Catete para saber quem lhe era fiel, durante a qual presenteou Tancredo Neves com sua caneta, em meio a desagradável discussão de Alzirinha com o general Zenóbio. Coube-lhe então falar:
- Reuni-os para ouvir a opinião de todos. Mas já que não decidem, eu vou decidir. Disponho-me a requerer uma licença. Caso contrário, se os insubordinados quiserem impor a violência e chegarem até o Catete, levarão apenas o meu cadáver.
Ao suicidar-se, ele conseguiu transformar uma derrota política num triunfo histórico - cujos 50 anos se celebraram ontem - através da Carta-Testamento, para a hipótese de uma resistência e não de um suicídio: ''Eu vos dei a minha vida. Agora, ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História''.
Uma semana antes, quando se tornara quase insuportável a pressão pela sua renúncia, e pretextando problemas cardíacos, Getúlio perguntara ao seu filho Luthero, médico, onde exatamente ficava o coração. E Luthero, em seu apartamento da Rua Barata Ribeiro, 30 anos depois, me confirmaria:
- Encostei dois dedos da minha mão direita bem abaixo do seu mamilo esquerdo e respondi-lhe: 'Fica bem aqui'. Pode-se imaginar o meu remorso, quando, uma semana depois, talvez seguindo as minhas instruções, meu pai alvejava justamente aquele local, como o mais certo e seguro para se matar.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 25/08/2004