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Vinte e cinco anos sem Dalcídio

 

Quando morreu, em 1979, perdeu a literatura brasileira um de seus maiores romancistas de qualquer tempo. Pois isso foi, com toda a certeza, Dalcídio Jurandir. Nascido em 1909, na Ilha de Marajó, mestiço de três raças - a branca, a negra e a indígena - explodiu ele na literatura brasileira ao ganhar em 1938, com seu romance "Chove nos campos de cachoeira", o até hoje famoso concurso literário do jornal "Dom Casmurro", em cuja direção estava Jorge Amado. Foi o começo.


Depois surgiram os livros "Marajó, três casas e um rio" e, bem mais tarde, o melhor romance proletário feito entre nós, "Linha do parque". Em "Três casas e um rio" vence Dalcídio o conflito, normal em quem escreve, entre a concepção e a técnica. Esta, que é a feitura do livro, procura perturbar aquilo que Coleridge chamava de "o espírito formador da imaginação". "Três casas e um rio" é um romance selvagem, mas Dalcídio consegue sempre domar o surto bruto que lhe sai de dentro e, num ritmo natural de coisa primitiva, chegar ao equilíbrio.


Muitas obras literárias tendem para a música (tempo), enquanto outras se dirigem no rumo da estrutura arquitetônica, ou do traço, ou da forma pictórica (espaço). Pode-se dizer que Dalcídio Jurandir se posiciona claramente no plano rítmico de Proust, em quem a composição sinfônica da obra se subdivide ao mínimo, ou ao máximo.


É claro que, na mesma linha de aproximações, o romancista da Amazônia difere, e muito, do criador de Swann, como, no plano musical Villa-Lobos (a quem Dalcídio poderia, filiar-se) se separa de César Frank (com quem Proust se aparentaria). Essa digressão serve para acentuar a divergência entre a obra literária que busca o tempo e a que se fixa no espaço.


Possui Dalcídio Jurandir aquilo que, aproveitando indicações de ensaio de Warren Beck, eu chamaria de "aspectos da experiência humana abstraídos dos elementos de uma visão particular". "Três casas e um rio" rompe algumas fendas em mistérios da condição humana. E nisto jaz uma de suas maiores qualidades como ficcionista.


Só um grande romancista conseguiria, depois de haver implantado a Amazônia na literatura brasileira, ter resolvido ir ao Rio Grande do Sul e ali escrever o romance do proletariado brasileiro. Refiro-me à "literatura do mujique", representada na Rússia pelos "romancistas do povo", grupo de que Górki foi o arauto. O romance que então elaborou, "Linha do parque", conta meio século de lutas de operários, no porto do Rio Grande. Desde os anarquistas de fins do século XIX até os comunistas da II Guerra Mundial, o que aparece no romance é o choque de classes e a gradativa conquista de alguns direitos.


O sentido panorâmico de "Linha do parque" é obtido através de descrições corridas, numa cavalgada de cenas e pessoas que dá, ao romance, um ritmo de larga beleza. Quando Iglézias chega ao Rio Grande, é o Brasil da época que o narrador faz reviver. A febre amarela, a revolta da esquadra, as confusões dos primeiros anos da República, tudo isto se integra na vida do anarquista espanhol, que entra logo em contato com carroceiros, operários, estivadores, para o combate à pobreza.


A técnica de narrativa de Dalcídio Jurandir se revela, na parte do romance que vai até às vésperas da revolução de 1930, de extraordinária objetividade. O estabelecimento da organização anarquista possui um sabor de coisa bem contada que põe, de súbito, esse trecho do livro num dos pontos mais altos que o nosso romance tem atingido. A fundação do grupo teatral, as discussões dos revolucionários, as primeiras greves, tudo isto se junta num bloco de estrutura solidamente erguida.


"Linha do parque" é a mais séria tentativa já feita no Brasil de ser colocado em romance um movimento exclusivamente revolucionário. Com esse livro firmou Dalcídio Jurandir sua posição ímpar na literatura brasileira.


Num esforço para interromper o silêncio que tombou sobre a obra de um grande escritor, está a Fundação Casa de Rui Barbosa, através de seu departamento de pesquisa, levantando a biografia e a obra de Dalcídio Jurandir, num trabalho que vai realçar a importância desse amazônida que pertence à primeira linha da novelística brasileira e cujo abandono, por parte de todos nós que temos a literatura no corpo e na alma, é de todo condenável e precisa ser corrigido.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 31/08/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 31/08/2004