Em 31 de março de 1967, inaugurava-se no Brasil um tipo novo e complicado de poder: o marechal Castelo Branco entregava a Presidência da República ao também marechal Costa e Silva. Em cerimônias análogas, nos anos seguintes, o posto hierárquico baixaria para o de general-de-exército. Seguindo o exemplo dos rinocerontes, os marechais entravam em fase de extinção, o próprio Castelo Branco abolira o posto na pirâmide funcional.
A filigrana dos regulamentos militares atingia a Presidência da República, incorporada ao posto máximo de carreira. O poder de fato continuaria com o Alto-Comando Militar, que, em regime de baixa rotatividade, designaria de tempos em tempos um de seus membros para a missão de governar o país.
Com variações de temperamento, estilo, indumentária, hábitos pessoais, saúde e gramática, o Brasil seria administrado por um sistema centrado naquilo que se convencionou chamar de "Revolução de 1964", cuja peculiaridade era não ter idéia revolucionária nenhuma, tirante um conjunto de conceitos, preconceitos e preceitos que impedisse a nação de mergulhar no caos comunista e na orgia da corrupção.
Estabelecido o adversário - comunismo e corrupção -, fixou-se a tática que melhor combateria o monstro de duas cabeças. Somente os militares teriam condições para unir, reunir, gerir, intervir, decidir e assumir todas as operações do Estado e da sociedade. Entre Castelo Branco e Costa e Silva existiam divergências, mas ambos concordavam no essencial: o importante era que não surgissem reações que pudessem ameaçar a "pax castrensis" imposta ao país.
Em Lisboa, meses antes, o pacto firmado entre Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda constituía o mais forte indício de que o adversário superara a fase do "salve-se quem puder" e começava a se arrumar no terreno. Até então, as reações provocadas pelo movimento militar eram dispersas em posições isoladas, emocionais em alguns casos, radicais em outros, pulverizadas em grupos heterogêneos que procuravam uma composição em torno de esquemas que não davam certo. Intelectuais de diversas origens, mais tarde os estudantes, esses foram os primeiros adversários que se descobriram no combate ostensivo ao movimento de 64.
Em 1965, na eleição para os governos de Minas e da Guanabara, surgiria a constatação de que um chassi ideológico não bastaria para criar um denominador comum que empolgasse o povo e pressionasse o poder. Era necessária a união da sociedade civil em torno de suas lideranças mais óbvias. Nesse sentido, o Pacto de Lisboa estourou como o primeiro petardo lançado contra o núcleo militar que constituía o fundamento do poder.
Do ponto de vista do governo, era importante impedir que ao debate político fosse dado o tom de uma luta entre civis e militares. As coordenadas teriam de permanecer as mesmas, ou seja, de um lado o segmento sadio da nação, centrado nas Forças Armadas, de outro os subversivos e corruptos.
Nos arquivos dos ministérios militares (Exército, Marinha, Aeronáutica) e do Serviço Nacional de informações (SNI), havia um mundo de nutridas pastas que continham os regulamentos e a rotina a serem seguidos em caso de emergência. Nessas pastas estavam os dossiês sobre os presumíveis podres das principais lideranças, que incluíam desde negociatas nem sempre provadas até episódios particulares, como adultérios, homossexualidade e outros pecados menores da humana espécie. Tal como na rotina do Pentágono e do Kremlin, essas pastas não eram para serem abertas, serviam apenas de elemento de intimidação ou, conforme a situação, de barganha.
Explica-se: a maior parte das lideranças civis estava cassada ou exilada, fora de combate. As duas únicas que haviam permanecido no Brasil viviam sob controle: Lacerda e Magalhães Pinto. Apesar de pertencerem ao mesmo partido (UDN) e de se terem unido na luta comum contra o governo de João Goulart, eram dois temperamentos diferentes que queriam a mesma coisa (o poder). Jamais se juntariam. "É mais fácil Lacerda fazer acordo com Jango ou com o cadáver de Vargas do que se unir a Magalhães Pinto!", afirmara um teórico da situação, sem saber que estava exercendo distraidamente o raríssimo mister de profeta.
O Pacto de Lisboa deixou atônitos os estrategistas políticos do governo, que não temiam as inconseqüentes explosões dos estudantes nem o complicado desabafo dos intelectuais. A aliança entre JK e Lacerda estourou como uma violação das regras, que, mesmo durante as guerras, costumam ser respeitadas por ambos os lados. Era sinal de que "valia tudo", para usar a expressão de outro estrategista do governo.
JK e Lacerda juntos exigindo a redemocratização do regime era dose. A dupla logo se transformaria em trio: Jango aderiu ao movimento e também lançou manifesto com Lacerda. Formava-se a coligação do PSD, da UDN e do PTB, que não chegaria a se concretizar antes de 64. Além das siglas, que nada mais representavam, era a aliança das três lideranças de maior peso no cenário nacional. JK, Lacerda e Jango formariam no varejo (e no barato) 90% do eleitorado potencial da nação. Era dose. Foi o primeiro golpe civil contra um golpe militar.
Folha de São Paulo (São Paulo) 04/03/2005