A morte de Homero Senna, há pouco mais de uma semana, privou-nos de um trabalhador intelectual como tivemos poucos. Conheci-o nos anos dourados de Juscelino, quando trabalhamos ambos no então Ministério da Viação e Obras Públicas, ele no gabinete do Ministro Lúcio Meira, eu como diretor do Serviço de Documentação. Redator dos relatórios da pasta, usava Homero Senna um estilo direto, claro, sem a menor desconversa, como devem ser os documentos oficiais.
Lembro-me de uma empreitada, a que se dedicou, a de redigir o texto inicial que veio a criar o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), através do qual Juscelino obrigou o Brasil a fabricar e exportar automóveis.
Escritor, jornalista e pesquisador, foi Homero, acima de tudo, um trabalhador intelectual incansável. Em debate havido na Academia Brasileira de Letras, sobre o papel e a importância do crítico literário, do analista de livros, daquele que, em princípio, comanda o movimento cultural de uma época, foi esquecida a figura do trabalhador intelectual, do pesquisador puro e daquela figura mais abrangente que se costuma chamar de "homem de letras". Gente como Brito Broca, Waldemar Cavalcanti, Olívio Montenegro, Vivaldi Moreira, homens que escreveram sobre livros e dedicaram suas vidas a livros e a lides literárias.
Homero Senna foi, além do mais, um biógrafo de alto nível como o prova o livro que escreveu sobre Gilberto Amado. Editado pela José Olympio ainda em vida de Gilberto, obteve um extraordinário êxito de crítica, seguido de venda acima do normal.
Em outro e bom livro seu, tive participação direta. Dirigia eu a Coleção Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras quando Homero me disse que havia feito pesquisas sobre a presença de Rui Barbosa na Casa de Machado de Assis. Disse-lhe que era assunto que poderíamos publicar na Academia. Surgiu, assim, o volume nº 52 da Coleção Afrânio Peixoto, "Rui Barbosa e a Academia Brasileira de Letras".
Nele, revela Homero suas qualidades de pesquisador. Cuidadoso e sem os adjetivos desnecessários que uma obra dessas poderia inspirar, mostra o que foi a presidência de Machado de Assis à frente da ABL. Das quase 100 reuniões realizadas na Academia, de l897, quando começou a existir, até 1908 quando Machado morreu, somente duas deixaram de contar com sua presença, ao ponto de Josué Montello, mais tarde, escrevendo sobre o assunto, haver comentado: "À constância de sua operosidade, deve a instituição sua existência perene".
Morrendo Machado a 30 de setembro de 1908, ninguém mais indicado para fazer o discurso de despedida e de adeus do que Rui Barbosa. Joaquim Nabuco era o secretário-geral e devia assumir a presidência interina da casa. Como estava ausente, assumiu-a Euclides da Cunha que era o primeiro- secretário.
Na primeira reunião de acadêmicos, tratou-se de eleger o substituto de Machado. O nome escolhido foi, por 16 votos, Rui Barbosa. Só havia 16 acadêmicos no Rio de Janeiro, de modo que a eleição fora unânime. Uma comissão de acadêmicos, de que fazia parte o próprio Euclides, foi a Rui Barbosa comunicar-lhe a escolha.
Rui não queria aceitar, alegou o excesso de compromissos de que vivia cercado, mas o argumento de Euclides de que a eleição fora unânime convenceu-o a mudar de opinião. Os jornais do dia seguinte levariam Rui a recusar de novo o cargo. Diziam vários articulistas que 16 numa comunidade de 40 nomes estava longe de ser unanimidade.
O discurso de Rui que é tido como dos melhores que fez na ABL foi o que dirigiu a Anatole France a 17 de maio de 1909 quando o escritor francês, a caminho de Buenos Aires, passou um dia no Rio de Janeiro e foi recebido na Academia Brasileira de Letras que, naquele tempo, funcionava no Silogeu Brasileiro, onde existe hoje o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em frente ao Passeio Público.
Discurso entusiasmado, nele Rui elogia o escritor e discorda, educadamente, de suas idéias filosóficas. Rui falou em francês e, em texto escrito para Alfredo Pujol, Anatole France elogiou o discurso de Rui, dizendo: "Le président de l'academie brésilienne m'a parlé dans le langage français le plus noble et le plus pure".
Em seu discurso, agradece também Rui a Anatole o haver presidido, em Paris, a sessão especial que a Academia Francesa fizera em homenagem a Machado de Assis.
Narra Homero Senna, em seu livro, todos os pormenores do affair Rui-ABL, que se prolongaria até quase a morte de Rui. Em certa época, pediu ele demissão da Academia, não mais queria ser membro da instituição. De acordo com os estatutos da Casa de Machado, quem entra é para sempre. Não pode abandoná-la.
Rui voltou à Academia em 6 de julho de 1921, dia em que a Casa de Machado homenageava o cinqüentenário da morte de Castro Alves, de quem Rui fora colega no Ginásio Baiano de Abílio César Borges ainda no século XIX. Com a morte em 1923, de Rui, a Academia prestou-lhe todas as honras.
Um dos discursos - de Constâncio Alves - após a morte de Rui, lembrava a de Machado e dizia: "Os que, naquele dia, lamentavam o desaparecimento do homem a quem denominaste o "mágico do conto", e o "joalheiro do verso", podiam encontrar algum lenitivo para o irreparável, considerando que tu, Rui, nos ficavas."
O livro de Homero permanecerá como um documento a mais de seu labor intelectual, de sua presença permanente na literatura brasileira, escrevendo, fazendo pesquisas, instigando assuntos.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 21/09/2004