Até que enfim aparece entre nós um livro que faz justiça ao brasileiro Alberto Cavalcanti. Tendo sido, como foi, um dos responsáveis pela criação da linguagem cinematográfica no mundo, raras vezes citamos, no Brasil, seu nome como tendo influído poderosamente naquela que antigamente chamávamos de "sétima arte".
Quem viu "Dead of the night" ("Na solidão da noite"), filme inglês em que Michael Redgrave mostrou seu extraordinário talento de ator no episódio "O ventríloco", dirigido por Cavalcanti, nunca mais se esquece da força que as imagens podem ter num filme.
Pois sai agora no Brasil um precioso lançamento: o de um estudo sobre a figura e a obra de nosso maior cineasta num volume chamado "Alberto Cavalcanti, o cineasta do mundo", de Sergio Caldieri, que une a análise da filmografia do biografado ao relato da presença de Cavalcanti no Brasil, a partir do final dos anos 40.
Lembrei-me da participação que tive no começo do regresso de Cavalcanti ao Brasil. Iniciei minha atividade em jornal como crítico de cinema. Foi em "Diretrizes", que ainda existia quando Cavalcanti chegou ao Brasil. Tínhamos então uma entidade chamada Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABCC), de que eu era o diretor de Comunicação.
Recebi telefonema um dia, na redação de "Diretrizes", de Alberto Cavalcanti, que me disse estar no Rio. Queria conversar com um membro da ABCC. Marcamos encontro num apartamento do Rua Evaristo da Veiga, onde estava hospedado. Combinamos que a associação de críticos o receberia com coquetel na ABI, a fim de ele se encontrar com jornalistas ligados a cinema. O encontro foi um sucesso e aí começou, de certa maneira, a aventura cavalcantiana em sua própria terra.
Mais tarde visitei-o na Vera Cruz em São Paulo. Parecia feliz e realizado com as primeiras providências da companhia, baseadas em planos de Cavalcanti. Bem mais tarde ainda, já nos anos 70, quando o autor destas linhas era Adido Cultural em Londres, lá esteve ele para prestigiar um festival do cinema que eu organizara no Film Center Inglês. Cavalcanti mostrou-se alegre em rever dois amigos: Jorge Jonas, que dirigira "O auto da compadecida" de Suassuna, e Grande Otelo, que aparecia com destaque em "Macunaíma".
O livro de Sergio Caldieri vem recolocar em seus lugares algumas das verdades do cinema internacional desde que Alberto Cavalcanti, em 1926, fez "Rien que les heures". Vários de seus filmes são inesquecíveis: "A vida e as aventuras de Nicholas Nikleby", baseado no famoso romance de Dickens, feito na Inglaterra; na Áustria, "O senhor Puntila e seu criado", peça de Bertold Brecht; no Brasil, "Simão, o caolho" e "O canto do mar".
Consegue o livro de Sérgio Caldieri resgatar o nome e a memória Alberto Cavalcanti. Para Caldieri, seguindo a opinião de muitos outros, Cavalcanti influiu mais do que se imagina, e muito mais do que se proclama, na evolução da produção cinematográfica no século XX. Falei em "linguagem" no começo. É onde vejo com mais evidência a presença de Alberto Cavalcanti na arte do cinema.
Desde Griffith, nos primeiros anos do século passado, era isto que os cineastas pioneiros procuravam: encontrar a "linguagem" da nova arte das "figuras em movimento". Alberto Cavalcanti criou essa nova linguagem, deixou-a para o futuro, para as inúmeras formas de contar histórias e transmitir notícias que o cinema e a televisão de hoje usam, na sua busca de assuntos para o grande público.
O livro registra, ainda, o modo como Alberto Cavalcanti se relacionava com os famosos do meio cinematográfico. Por exemplo, com Eisenstein. O grande cineasta russo tivera experiência parecida com a de Cavalcanti, ao trabalhar no México. A lista dos cinco homens que hajam marcado para sempre a arte cinematográfica, feita por Cavalcanti, compunha-se de Griffith, Charles Chaplin, Robert Flaherty, Eric von Strohein e Eisenstein.
Uma das críticas de Cavalcanti a Hollywood era a divulgação, que o ambiente holywoodesco inspirava, de fazer publicidade de sua gente envolvida em divórcios exibicionistas, destacando casos de polícia por causa de drogas e brigas - isto é, degradando o mais possível o modo de vida na capital do cinema. E Sergio Caldieri assinala: "Cavalcanti achava que Hollywood sempre estava muito longe da aristocracia do cinema inglês, e ainda mais longe do primitivo teatro grego, quando os atores eram sacerdotes".
Como exemplos do teatro e do cinema na Inglaterra, Cavalcanti chamava a atenção para a tradição inglesa que enobrecia seus grandes atores, tornando-os mais respeitados e prestigiados pelo público. Assim, receberam o título de "Sir" os atores Sir Laurence Olivier, Sir Ralph Richardson, Sir Cedric Hardwyck e, para atrizes, o título de "Dame" como Dame Sybil Thomdyke.
"Alberto Cavalcanti, o cineasta do mundo", é um lançamento da Editora Teatral Limitada. Diagramação de Maria Guadagno e Anderson de Assis, revisão de Simone de Oliveira, capa de Marcel Verthein e Kiko Friedman.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 08/03/2005