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Mártires da consciência ecológica

 

Dorothy Stang e o Cabo Dionísio Julio Silveira morreram na mira não de quem apertou o gatilho mas de um medo novo do país arcaico, frente à nossa nova, desarmada, inevitável consciência comunitária. O que desaparece cada vez mais é a velha noção da impunidade que derruba o Brasil arcaico. Leonardo, de 21 anos, paramentou-se para a execução do Cabo Júlio, roupa de camuflagem, a espingarda de seis tiros, em dois disparos a três metros da vítima. Requinte da exatidão, como do ato seguinte, de tirar o uniforme assassino e ir para a praça, no horror assumido, de livrar-se de um estorvo ao seu direito de caçar, e fazendo jus à liderança que buscava no seio do grupo. Rayban, na Amazônia, esparrama-se na assentada monstruosa, cinco balas após o estraçalhamento da cabeça de Dorothy, com a sua 38. Mortes avisadas, na proposição de um novo rito macabro, para valer. Difícil de se acreditar na ameaça, de saída, como se estivéssemos no campo das vendetas, ou do abate de desafetos, no crime de interesse pessoal que pára no algoz, e não pergunta do mando. Ou da motivação maior, ou da percepção difusa do que seja a ameaça que ferreteia o futuro assassino. Dorothy e o Cabo Julio abriram mão da segurança oferecida, por não acreditarem que o tiro se seguisse ao telefonema, a desoras.


O novo - e o trágico - residem na ameaça real que a ação cidadã carrega, neste momento, pela coragem repetida das denúncias e, ao mesmo tempo, pelo começo das medidas de repressão, desemperradas deste aparato do fiscalizar de todo o sempre, perdido e frouxíssimo. Passa-se a forçar a porta e impor-se aos infringentes da lei que sai, de vez, do papel. É difícil depararmos dois enterros mais expressivos do que seja a cara da comunidade, a compor esta vigília contra o à vontade no abuso e no crime continuado.


O novo medo difuso inesperado para a cidadania, arma braço sobre braço, chegando ao disparo último, e subindo a pirâmide do último mandante. Mas em nada as mortes se fazem num rompante ou no entrevero, mas na execução minuciosa, a abater a contumácia do denunciante que é um novo personagem, como Dorothy ou o cabo Julio, na coragem pedida pela melhoria generalizada de um bem estar do país. Respondem à correção de anacronismos lamentáveis como o destes assentamentos de terra na Amazônia, que nem são os do MST na sua impaciência contra a injustiça à flor da pele, mas o remate de uma ação de consciência coletiva, diante da obscenidade do abuso fundiário na Amazônia brasileira.


Dorothy representa este novo franciscanismo do século XXI, que aposta no bom senso da fera se apascentada, lobo ou fazendeiro. O tiro fugia a expectativa já lograda ao sucesso de ''ações afirmativas'' das freiras, rumo ao resultado final e esperado dos assentamentos pretendidos. Tanto - pensava-se - acabara a capacidade de intimidar, quanto passava a consenso a demanda, de que a irmã Stang não era sequer a cobradora, mas a testemunha da consciência do desfecho. O horror dos disparos parece vir, sim, de um curto-circuito do Brasil arcaico, puxado às últimas barricadas, e a se dar conta de que não há mais como estancar uma mobilização cidadã, nos plantões e cobranças pela justiça social.


É quando a busca da busca do mandante ao supermandante acaba na largada do avião do suspeito final, e a alta inopinada do novo medo alterou o mercado das cabeças à prêmio, nas várzeas da grilagem contumaz, do infinito dos seus contenciosos inúteis, ou do perene furta-cor entre polícias e delinqüentes. Dorothy é a mártir moderníssima deste novo conflito social no país, em que se abalaram as garantias da impunidade abissal da propriedade em estado selvagem, em função de um novo ator incontrolável pela propina, e a regenerar as suas cabeças, sem mais, pela nova consciência comunitária do país.


A casualidade com que a irmã Dorothy dispensou o aparelho policial é, também, a da segurança do poder de mobilizar, chegando ao comezinho, e que criou a rotina do inevitável, numa efetiva maturidade e denodo da consciência popular ativa no país. É o mesmo sucesso e imolação do cabo Julio, como se a demanda ecológica, num luxo cívico inesperado, aviventasse a auto-estima e o sentido comunitário das áreas desgarradas da Baixada. O novo medo em Tinguá vem da preda dos palmitais, coisa de botim, do raso de quintais, tão distinta da Floresta Amazônica. E a retorção primitiva e frente ao mais doméstico dos lances comunitários, do seu Júlio de todas as esquinas, da vistoria dos seus palmos de verde defendido, a forçar a execução da sentinela ecológica. Tanto é menor o botim, tanto a sua vindita, é já francamente monstruosa. Puxa da arma, o caçador ou ladrão de palmitos, cercado dos mil olhos que se acenderam com a denúncia que foi ao governo e que vai à rua sem mercê nem mão a molhar.


Dorothy e Dionísio Julio não deixaram um grupo lacerado, ao se enterrarem os seus caixões. Nem é com as rotinas do espanto, do horror e do mais de esforço na hora, que a pompa do policiamento dos caminhões na Amazônia, dos helicópteros da Baixada farão o esperado exorcismo do insuportável. As demoras ou falhas do que se averiguar não vão, simplesmente, a um passivo em conta aberta do governo. Estão em outro nível, e ainda imprevisível, dos agentes reais da cobrança. Desse fervilhar de base de uma consciência ecológica, que não precisam mais de lideranças necessárias - e Dorothy e o cabo Julio seriam os primeiros a reconhecê-los - para a tocaia do plantão cívico ao Brasil arcaico que perdeu, de vez, a sua impunidade.


 


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 09/03/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 09/03/2005