Politicamente incorreto, farei três coisas condenáveis pelos manuais de redações vigentes no país. Primeiro, contarei uma anedota que não é original e, mesmo que estivesse em primeira audição, neste nobre espaço não devia ser contada. Além disso, ridicularizarei um cidadão de outra nacionalidade, ainda por cima um cidadão lusitano, nosso irmão de sangue e língua.
Para coroar a sucessão e a gradação do crime, faltarei ao respeito para com um doente de moléstia grave. As pessoas de bom coração, bom gosto e boa formação cívica que passem adiante se acaso chegaram até aqui.
Deu-se que um português foi preso e trancafiado numa cela defronte a outra onde um leproso cumpria pena. Um dia, o português viu o leproso tirar um dedo do pé esquerdo e jogá-lo pela janelinha da cela para fora.
Uma semana depois, para espanto do português, o leproso tirou a orelha direita e jogou-a fora. Passaram-se dois dias, o doente tira o pé esquerdo e também o joga pela janelinha. Para horror do português, numa tarde de sábado, o leproso tira o nariz da cara e também o atira para fora da cela.
Era demais. Na manhã seguinte, quando os guardas faziam a ronda, o português pede que o levem ao diretor do presídio. Tinha uma denúncia importantíssima a fazer, exigia uma conversa com o responsável pela segurança da prisão. O guarda chamou um oficial, o oficial quis saber o que era, mas o português fincou o pé: era coisa tão relevante que somente poderia ser comunicada à autoridade máxima do local.
Levado ao diretor, o português olhou em volta, examinando o local para ver se havia alguma outra pessoa que pudesse ouvir o que tinha a dizer. Tranqüilizado a esse respeito, abaixou o mais que pôde a voz: "Doutor, não quero ser dedo-duro, mas o gajo que botaram na cela em frente à minha está a fugir aos pouquinhos".
Folha de São Paulo (São Paulo) 12/03/2005