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Lêdo Ivo: o ser e o som

 

Aceite-se, por base, ser ele o grande poeta brasileiro de nosso tempo. Na linha de outro alagoano, Jorge de Lima, alcançou Lêdo Ivo o ápice do fazer poesia nesta parte do mundo. Ao completar ele agora os 80 anos de sua idade, inaugura a Academia Brasileira de Letras uma exposição em sua honra e sai, pela Topbooks/Braskem, um volume de 1.099 páginas com sua poesia completa.


Sua obra, de beleza ininterrupta, vem do começo dos anos 40 do século XX, quando, mal entrado na adolescência, deu início à geração de 45 e dela se tornou para sempre dono. A partir de então, jamais deixou de viver cercado de palavras e ritmos, numa série de poemas que redimem toda uma geração.


Lembro-me da indignação com que o editor americano Alfred Knopf, certa vez em Nova York, num grupo de escritores, em que me achava, respondeu ao professor mexicano Eugênio Villicana, que usara a expressão "os vinte grandes poetas da América de hoje". Diga-se que, no caso, por América aludira ele somente aos Estados Unidos.


Perguntou Knopf: "Você pensa que há vinte poetas na América de hoje? Temos talvez três. Ou quatro. Cinco, no máximo." Alguém ponderou então que um país ter 20 grandes poetas ao mesmo tempo é coisa que não acontece desde a Grécia, ou a Itália da Renascença, ou a França do Simbolismo. No final, afirmou Knopf: "Cinco bons poetas dão para redimir uma geração."


Que Lêdo Ivo está nessa lista não há, hoje, a menor dúvida. Ele nos representa e joga-nos - a nós, que somos seus leitores e nos transformamos em seus personagens - contra Deus, contra o destino, contra nossos companheiros de caminhada, levando-nos a um entendimento do ser, pois, sendo o poeta do ser e, portanto, do tempo, é ele também um poeta do estar e, portanto, do espaço. Em seu livro "La poétique de l'espace", de Gaston Bachelard, o espaço aparece como fundo também do conceber poesia. O espaço, para ele, é tão nosso como o tempo.


Nenhum outro poeta brasileiro, como Lêdo Ivo, nos faz pensar, imediatamente, em Rimbaud. Seus poemas da adolescência já tinham essa marca, mais de parentesco do que de influência. Seu domínio do metro, da palavra usada sempre de modo original, mas também o seu domínio da ironia, perto da sátira, fazem dele um poeta diferente, quase um lírico cético. Há, contudo, no ceticismo de seus versos, a lúcida visão poética de um "miglior fabbro", nele estando ao mesmo tempo a qualidade que Dante deu a Arnaut Daniel e a de "ladrão do fogo" e dono da luz que atribuímos a Rimbaud.


Mas se Lêdo Ivo representa a poesia do ser, não menos está ele situado no domínio do som. Sua poesia é também som, ela é som, som e som, na beleza de seu ritmo, no cuidado como se pega no som das palavras, como se tivesse a responsabilidade total de um compositor, atento às suas melodias, ao som de uma palavra independente de sua classificação no dicionário. Nele, o som é também comunicação, é um modo de realçar a musicalidade real de um conjunto de sílabas.


No começo de sua caminhada - por exemplo em "Ode e elegia" (1944-1945) - espraiadas e longas correm as palavras, num ritmo de cantata lírica, de claras notas musicais e significados próximos de um antigo vocativo, como nestes versos:


Oh! Que venha o azul ou a sombra do azul, e nos precipite / no misterioso nada onde tudo existe, na solidão / onde a noite se abre para Deus como as estrelas dos outros tempos se abriam para os olhos insaciáveis da infância". Em "Magias (1955-1960), os cânticos soltam sons de dança e o poeta pede: "Bailemos: a vida é breve. / Cantemos: a saia é leve / Bebamos: é de cevada / o sonho de nossa treva".


Dia após dia, mês após mês, foi o poeta erguendo seu mundo de versos, mas nem só de versos tem ele vivido, pois seu romance "Ninho de cobras" firmou-se como dos melhores livros de ficção da segunda metade do século XX no Brasil.


Traduzido para o inglês, teve em Londres uma recepção crítica da melhor qualidade. Certo é que muitas das páginas dessa narrativa são pura poesia, inclusive na marcação de sílabas que se infiltram na prosa e surgem como cânticos.


Dessa musicalidade não se livra ele, fazendo lembrar a definição de Paul Eluard: "Poesia é a linguagem que canta". Definindo ele mesmo a poesia, disse Lêdo Ivo no volume "Curral de peixe" (1991-1995):


"Poesia é risco? / Rabisco de Deus / guardado num disco / ou um asterisco / ao pé do obelisco? / Confisco do fisco? / A rês desgarrada / do aprisco? Ou chuvisco / que umedece o hibisco / no jardim mourisco?"


Do livro "Crepúsculo civil" (1988-1990), cito poema que mostra a larga faixa da técnica do verso usada por Lêdo Ivo. É "Refém":


"Deus é meu refém. /Para libertá-lo/ exijo o resgate/ da imortalidade./ Deus não é ninguém./ Imóvel na praça/ quando a tarde cai/ Deus não vai nem vem./ As estrelas passam/ e Deus é silêncio/ que habita as galáxias./ Sou o centro de tudo/ e guardo um Deus mudo/ no meu coração."


"Poesia completa" (1940-2004), de Lêdo Ivo, aparece com estudo introdutório de Ivan Junqueira. Coordenação do projeto editorial da Interamericana. Editoração e fotolitos da Arte das Letras, revisão de Christine Ajuz, capa de Adriana Moreno. A última parte do livro apresenta a bibliografia completa do autor, inclusive com todas as traduções, tanto de poesia como de prosa, que levaram sua obra ao estrangeiro.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 05/10/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 05/10/2004