O primeiro brado verdadeiramente ecológico lançado no Brasil não aconteceu por acaso. Devemo-lo ao maior estudioso de problemas brasileiros que, tampouco por acaso, tem livro chamado O problema nacional brasileiro. É dele, Alberto Torres, o ensaio As fontes da vida no Brasil, cuja primeira edição é de 1915. Não pensem os que não o leram tratar-se de referência, em frase ou parágrafo, a uma defesa e conservação da natureza, feita en passant, para ilustrar um argumento qualquer. Não. O trabalho de Alberto Torres é, ao longo de 31 páginas, um estudo sobre as duas fontes da vida no Brasil, respectivamente no corpo e no espírito de seus habitantes: a natureza e o trabalho.
O ensaio de Alberto Torres, como grande parte do que escreveu curvado sobre o futuro do Brasil, podia ter sido escrito no começo do século 21. Torres fala na inteira ignorância, por parte da elite de nosso país, do grave problema ecológico (ele não usa a palavra, que ainda não estava na moda; prefere ''climatérico'') e adianta que esse problema impunha ''a imunidade dos altos e dos vales superiores das serras, onde, em lugar de habitações, de cidades e de fábricas, se deveriam ter estabelecido e mantido depósitos de acumulação de águas para distribuição nas regiões inferiores habitadas, urbanas e rurais, e para conservação do clima normal''.
Os argumentos de Alberto Torres são atuais: ele discute ''a extinção visível de inúmeras espécies naturais úteis e o patente esgotamento de uma infinidade de riquezas'', menciona ''o sepultamento de regiões, outrora férteis e intensamente exploradas, sob o pó dos desertos, como no vale da Mesopotâmia''; e combate ''uma ciência que propaga a ilusão da quase-eternidade dos tesouros e dos produtos de nosso planeta''.
E veja-se a modernidade de um trecho de Alberto Torres que poderia hoje aparecer sob as assinaturas de James Lovelock ou José Lutzenberger, defensores de Gaia, a Mãe Terra: ''O problema do reflorestamento, o da restauração das fontes naturais e o da conservação e distribuição das águas são, em nosso país, problemas fundamentais, extraordinários, mais importantes que o da viação comum, mais importantes que o das estradas de ferro''.
A reedição do ensaio ecológico de Alberto Torres - desaparecido, oculto e esquecido desde sua publicação em 1915 - foi uma iniciativa digna de organização séria como a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, que a tomou e fez imprimir o volume sob os auspícios da Fundação Getúlio Vargas. Para essa nova edição, impressa 75 anos depois do lançamento, Marcos Almir Madeira escreveu uma introdução exemplar. Assim, no contexto da mesma terra fluminense - a que também pertenceram outros dois extraordinários estudiosos dos problemas básicos do Brasil, Euclides da Cunha e Oliveira Viana - a crise brasileira de agora revela-se como tendo suas raízes na de ontem.
No ensaio de Alberto Torres, atente-se também para o segundo problema e a outra fonte da vida brasileira: o trabalho. O escritor fala sobre o egoísmo das chamadas classes superiores brasileiras e a falência de nossos governos que, diante do problema da organização do trabalho no país, ''nunca fizeram outra coisa senão resolvê-lo contra o homem brasileiro, e contra a economia nacional, quando importou escravos e quando importou colonos''.
Considere-se obrigatória a leitura de As fontes da vida no Brasil, de Alberto Torres. Direto, sólido, científico e escrito no estilo entusiasmado e claro de um brasileiro que não desconversa, integra-se, como ensaio de um povo e de uma nação, no corpus dos estudos mais sérios daquele e de nosso tempo, que o autor resume no último parágrafo do trabalho: ''Eis, por fim, a obra sagrada da nossa geração: restaurar as fontes da vida, no corpo do país, e as fontes da vida no corpo e no espírito de seus habitantes. Aquelas, pelo clima e, sobretudo, pela água; e esta, pelo trabalho''.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 06/10/2004