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Reconsidere, Ministro!

 

Meu caro Gilberto Gil, você agora está ministro e vai bem. Traz uma imagem forte a uma pasta com poucos recursos. Mas foi outro Gil, o excelente músico e letrista instigante, que sempre fez parte da minha vida. É a seus versos que recorro para sair do recolhimento que busco, neste tempo de holofotes, realces e quanto mais purpurina, melhor. É mesmo sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.


Li suas declarações na China, defendendo a diminuição de direitos autorais para reduzir o preço de livros e discos. No primeiro momento, achei o comentário tão infeliz que não acreditei. Esperei o desmentido. Afinal, com noticiarios 24 horas no ar, a pressa daí decorrente, a inexperiência de jovens repórteres, a ânsia do sensacional, estamos todos sujeitos a ler nos jornais o que não dissemos ou afirmamos em outro contexto. Você tem sido vítima contumaz disso, até mesmo na página oficial do seu ministério. Pode ser que este seja o caso, e você ainda não tenha retificado porque estava viajando e não viu a reportagem. Tomara.


Mas se você disse mesmo o que saiu na imprensa, faço algumas ponderações. Oriento-me pela constatação de que tudo merece consideração, como você ensinou. E lhe peço que considere justamente o significado de suas palavras temporãs.


Não vou falar da música, por mais que a MPB alimente meu coração. Você sabe da luta do compositor desconhecido para tentar ganhar algum com seu trabalho, torcendo para que alguém o descubra e grave (ai, que saudades de Nara e Elis) . Não creio que ache que ele pode abrir mão dos seus direitos. Ou que imagine que todos são também intérpretes, emplacam musicas em novelas e ganham altos cachês em shows. Ou que ignore o estrago que a pirataria vem fazendo.


Prefiro comentar minha área: livros. O Brasil é signatário de convenções internacionais que protegem o direito autoral e a China se recusa a assinar. Fazer uma proposta dessas em território chinês equivale a questionar em território americano o protocolo de Kyoto e sugerir que a emissão de gases poluentes pode ser negociada - um ecologista militante pode avaliar a gravidade do contexto.


A determinação do preço de um livro passa por muita coisa. Não é fruto da reles ganância do editor. Mas uma tiragem maior garante preço menor. É do interesse de todos - leitores, autores, editores , ilustradores e livreiros - que as vendas aumentem. Não que as tiragens sejam baixíssimas e o preço tenha que ser alto a fim de pagar os custos. Estamos todos no mesmo barco. E a solução passa por questões muito mais complexas do que a redução do percentual de direitos. Autor ganha tão pouco que em geral tem de trabalhar em outras atividades. A última coisa que precisa é ver o governo se alinhar ao lado de quem acha que é muito.


Sergio Buarque de Holanda disse que brasileiro tem aversão às virtudes econômicas e não gosta de pagar trabalho intelectual. É parte do desprezo ao trabalho braçal, vindo da escravidão. Como se escrever fosse nobre, algo a ser remunerado com honras e prestigio, não com moeda capaz de pagar as contas. Não passaria pela cabeça de ninguém propor que os gráficos tivessem seu salário reduzido para baratear os livros. Mas escritor pode ser alvo dessas propostas. Por quê? Para que só privilegiado possa escrever? Que os menos favorecidos nunca tenham a chance de sobreviver da sua palavra? O que barateia livro é tiragem alta. Uma sociedade leitora. Coisa que pode ser incentivada por politicas que multipliquem bibliotecas, estimulem o mercado editorial, formem professores leitores. O governo pode ajudar e muito.


Conheço sua militância pessoal em favor da leitura. Somos cúmplices no sonho do Brasil Leitor. Por isso, torço carinhosamente para que o poeta da Refazenda refaça sua análise e reconsidere suas palavras. Afinal, foi você quem nos orientou a não esquecer a constatação de que a aranha vive do que tece.




O Globo (Rio de Janeiro) 18/10/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 18/10/2004