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Mar aberto

 

Cena de um filme de Jacques Tati com a qual me identifico: num balneário de classe média, um executivo gordo e careca está boiando no mar, de óculos escuros para se proteger da luminosidade meridional.


Um mensageiro do hotel onde o executivo está hospedado chega até a praia trazendo a extensão de um telefone -naquele tempo não havia celulares. Grita pelo homem, avisando-o que é chamada urgente de Paris.


O executivo estava boiando e cochilando. Ao ouvir o aviso, vira-se e começa nadar furiosamente, mas em sentido contrário ao da praia. Despertado abruptamente, sente que é de sua obrigação fazer qualquer coisa, tomar providências. E a primeira providência que toma é partir, seja lá para onde for.


Não sou executivo de nada nem freqüento balneários de alta ou de média classe. Estou um pouco acima do peso, mas não chego a ser obeso. Escassos cabelos ainda me livram da categoria de careca, aquela que serve de referência topográfica quando se quer localizar um alvo: "Ali, logo depois daquele careca...à esquerda...".


Mas gosto de ficar boiando, sem fazer nada, de olhos fechados, protegendo-me não da luminosidade meridional, mas da luminosidade tropical. Quando sou convocado a alguma tarefa, faço que nem o executivo do filme de Tati: parto.


Tenho desculpa para a minha preguiça. Meu avô morreu na luta, o meu pai, pobre coitado, fatigou-se na labuta, por isso nasci cansado. (Esta última frase deveria vir entre aspas, é versinho de Orestes Barbosa para um samba de Noel Rosa).


Explicada a fadiga, fica difícil explicar por que tomo sempre a direção errada. Sou chamado à praia, aos telefones da humana lida, do continente me convocam para qualquer coisa que me cobram ou que me julgam capaz de fazer. No sobressalto da missão a cumprir, com boa vontade atendo ao apelo. Mas instintivamente evito a terra firme e prefiro a distância do mar aberto.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 20/03/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 20/03/2005