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Universidade e Constituição

 

O ministro Tarso Genro tornou a pauta da educação, sem dúvida, a mais relevante, na fronteira das conquistas sociais a que responde, especificamente, o recado do governo. A implementação do Prouni, com o apoio logrado da área pública e, sobretudo, da privada no terceiro grau, representou um avanço qualitativo nas prioridades nacionais do ensino. Tão percutente quanto a do analfabetismo drasticamente reduzido no país, é hoje a da massa de estudantes, mais de um milhão, capacitados à entrada no campus, e barrados pela falta de vagas da universidade pública, e sem recursos para ingressar na particular.


O projeto tornou-se realidade pela via forte da Medida Provisória no empenho de se trazer logo ao concreto a diferença, para valer, do Planalto. Não pode repeti-la agora, entretanto, na amplitude com que se pense uma reforma universitária em todo o seu porte. Não se trata mais de saciar-se o imperativo de injustiças sociais, mas trazer ao debate de toda a nação um instrumento crítico da nossa mudança social. Por isso mesmo, a partir da visão realística do que seja o peso de todos os setores envolvidos para a ampla colaboração da proposta de Tarso Genro. E hoje no país 80% deste ensino universitário está nas mãos da área privada. Todas as propostas de melhoria de desempenho, racionalização, garantia de prioridades orçamentárias e de descentralização que reclamem no projeto a área pública não terão o impacto macro-social que deseja o Executivo senão contar com a cooperação do ensino particular.


É inadmissível o propósito governamental cair na guerra de trincheiras, neste aspecto, da argüição da constitucionalidade algumas de suas normas. O Estado de Direito, mais que nunca é componente essencial da cultura petista. Aí está a amplitude também inédita do debate democrático da iniciativa. Não há precedente de ministro que se tenha dado mais a fundo ao esforço de esclarecer, ou contrapor-se, artigo por artigo, ou carta a carta, a polêmica já instalada no país. É à coragem e à inteligência de Tarso Genro que se volta o esclarecimento de premissa do novo Estatuto, que pode levar ao choque entre a perspectiva ideológica que decorra de visão dominantemente pública e as condições precisas de liberdade de ensinar, definida, exaustiva e repetidamente, por vários princípios da Carta Magna.


A educação em nossa Carta nasce como um direito absolutamente igualitário, entre o Estado, a família e a sociedade, de dar conta desta tarefa, no absoluto respeito às formas que adotar o agente privado. As universidades, como todos os estabelecimentos de ensino são, já, em si mesmo, atores da ordem social, e só a este título é que extraem a sua razão de ser na Carta Magna. Exigir agora que tenham ''função social'' é um expletivo redundante, ou uma determinação adicional do que seja esta atividade, como a entenda uma política de governo e não a norma genérica em que a Carta consignou, exaustivamente, o direito de ensinar. Sua prestação social é a de garantir a qualidade do que faz, e sobre ela incide a fiscalização do poder público. Da mesma forma, a Carta Magna limitou à universidade pública a gestão democrática. Não pode esta ser estendida por legislação ordinária, obrigatoriamente, à universidade privada. Fique como estímulo ou indução, jamais como norma imperativa. Quando a Carta limitou expressamente um preceito, não pode a lei ordinária entendê-la, a seu alvedrio, como reconheceria qualquer constitucionalista.


Doutra parte, não se vê como a ação afirmativa logre se transformar em obrigação legal. Como pode estar no corpo da norma quando a sua razão de ser é forçar, pela pressão social, a sua mudança? Vamos burocratizar o protesto e mata-lo na raiz? A educação não é serviço público prestável ao particular em termos de concessão. E nesses limites, permitindo ao Estado definir as suas regras como bem entendesse. O direito primário que a Carta dá ao particular, como a expressão da sociedade, de oferecer o ensino, ainda mais se reforça pela garantia de que o setor privado o faça, dentro do pluralismo garantido pela diversidade de idéias e concepções pedagógicas, que reconhece expressamente o art. 205. Essas mesmas diretrizes, a que está subordinada a iniciativa privada, não envolvem a forma de gestão no próprio respeito à livre iniciativa, em cuja natureza se inclui, por força, o regime de vontades que escolha e dê fundamento à sua ''idéia de obra''. A extensão da gestão democrática fora da área pública violenta a liberdade de ensino outorgada ineludivelmente pela Carta Magna.


Aí está, indene, a popularidade presidencial. A consensualidade na mudança tem sido a marca significativa com que o dito ''campo majoritário'' tem enfrentado, e ganho, o compromisso com a transformação social, dentro da estabilidade que espantou tanto aliados de Lula como adversários contumazes, e oposicionistas da primeira hora. É neste mesmo diapasão que o Ministério da Educação, no teor imperativo de assegurar a viabilidade objetiva da reforma atenderá, de justo, ao que diga - ou proíba - a Carta. Suas disposições para o Brasil real atentarão à diferença dos pesos e regimes com que o privado e o público concorrem à nossa universidade, no respeito ao que a Constituição não deixou ao alvitre dos governos da hora, em tempos de reação como de mudança.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 23/03/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 23/03/2005