Nós tamos ficando velhos mesmo, hem, cara? Prestei atenção umas duas semanas, em todos os jornais, e não peguei nem uma notinha, quanto mais um editorial. Tu não tem saudade de certos editoriais, não?
- Saudade de editorial? Tu já tomou quantos hoje, cara? Tu tem razão quanto a esse negócio de velhice. Tu agora fica de porre com quatro chopes e aí tem saudade de editorial. Taí, eu até tenho muito amigo jornalista, mas nunca escutei nenhum falando em saudade de editorial. De editorialista, tudo bem, os caras sabem de uns que eles veneram, tremendos profissas, português pra dar aula ao Rui Barbosa, cultura enciclopédica, argumentação de estraçalhar, sempre lembram um ou outro. Mas de editorial? Tu tá de porre.
- Qual é porre, tu também tem saudade, quer apostar? Quer ver um que tu vai sacar logo? “Evoé, Momo!” Ou senão “Ecos de Momo”! Vai negar que tu é do tempo do “Ecos de Momo”?
- Bem, é verdade, sempre tinha um desses. Mas não tenho saudade, não lembro de nenhum em especial, era tudo a mesma coisa.
- Exatamente! Exatamente! Era exatamente isso o que eu queria dizer. Era melhor, não ficava tudo mudando o tempo todo, como agora. Era o que eu queria dizer, é uma espécie de nostalgia pela via do editorial, tu me entende?
- Talvez sim, mas tu tá de porre.
- Tudo bem, não estou, mas tudo bem. E também tinha o editorial ou o artigo de fundo - nós somos do tempo do artigo de fundo! - intitulado “A lição das urnas”, não tinha, não?
- Tinha, tinha. Mas era tudo a mesma coisa também.
- Que maravilha! Tu pegava qualquer jornal daquele tempo, do tempo que tinha jornal e jornalista mesmo... Hoje é tudo troca-tinta sem categoria estilística. Tem um ou dois mais ou menos, mas, para quem já viu os jornalistas que o Brasil já teve, dá até tristeza. Tu pegava o jornal na semana depois que saía o resultado das apurações e lia aqueles desbundes fantásticos. Lições das urnas! Cada polissílabo de arrepiar, cada ordem inversa de deixar o sujeito sem fôlego, cada intercalação de matar o Hitchcock, cada adjetivo porradeiro que o leitor ficava tonto, era uma beleza mesmo, tu tem de admitir.
- Eram os tempos. É nostalgia mesmo, da perspectiva de hoje parece melhor, a gente romantiza o passado.
- Pode ser, mas tinha seu valor. Lições das urnas... Agora só saíram umas cartinhas de leitores e olhe lá.
- Eu até aceito tua saudade das lições das urnas como componente de uma era, dos chamados bons tempos etc. e tal, mas urna nunca ensinou nada a ninguém, não tem nenhuma lição das urnas.
- Ah, pera aí, eu discordo. Como não? Tu não vai me dizer que muita gente não tirou grandes lições dessas eleições, tu não pode negar, é uma coisa óbvia. A começar pelo PT. Tu vai me dizer que uma eleição como a de São Paulo não ensinou umas lições ao governo? Ou ao PT, que é a mesma coisa?
- Ensinou, ensinou. Eu mesmo já li as conclusões que eles tiraram, deu no jornal, tu deve ter lido também. Eles concluíram que a culpa foi da imprensa e da discriminação que a mulher sofre em São Paulo. Não foi lá que já elegeram d. Erundina e d. Marta, ela mesma?
- Foi. Mas, desta vez, o preconceito apareceu porque d. Marta se separou e se casou com um cara meio francês, meio argentino. Teve preconceito, sim, vamos admitir com sinceridade. Tanto aqui como em São Paulo, neguinho não vai muito com a cara de argentino, reconhece.
- Reconheço, embora ache que você exagera bastante. Mas, de qualquer forma, se foi essa a lição que o PT tirou, a conclusão é que a culpa foi do povo paulistano, que tem preconceito contra mulher que se separa do marido e se casa com um homem meio francês e meio argentino. E, portanto, se o povo paulistano não tivesse esse hediondo preconceito contra mulheres que se separam do marido e casam com homens meio franceses, meio argentinos, d. Marta teria sido eleita. Pronto, a culpa foi da imprensa e do povo. Se demorar mais um pouco, vem um aí e diz que foi de Deus também, porque a voz do povo é a voz de Deus, né não? Deus, eu não tenho certeza, mas a imprensa e o povo atrapalham muito o PT ou o governo, toda hora eles estão se queixando.
- Não, tu tá sendo sarcástico. Tem esses papos naturais de choro de quem perdeu, mas claro que não foi essa a lição que eles tiraram.
- Foi o que eu vi eles dizendo no jornal. Não vi nenhum deles dizendo que as derrotas dos petistas - inclusive em Fortaleza, onde pra mim foi a derrota mais feia, com dr. Genoíno, como diz o baiano, com aquela cara de porreta, dizendo que a candidatura da prefeita eleita era aventureira, pra depois ter de engolir o besteirol -, não vi nenhum deles, dizia eu, concluindo que o PT cometeu algum erro ou que os votos tenham refletido o sentimento dos eleitores em relação ao PT ou ao governo, que são a mesma coisa, como eu disse.
- Não, eles vão aproveitar a lição, você está enganado.
- É, vão. Vão continuar botando a culpa nos outros. Novidade no duro só aconteceu umas duas ou três vezes, desde que descobriram o Brasil. E de qualquer forma, não tem importância, porque os mesmos vão continuar mandando na gente do mesmíssimo jeito de sempre, na mesmíssima base do venha-a-nós que já fez quinhentos anos. Não mudou nada, nem aqui nem na matriz, onde as urnas também não deram lição nenhuma. Os mesmos vão continuar mandando do mesmo jeito na gente e os mesmos que mandam nesses mesmos também, nem era preciso saber quem ganhou, a gente é que não foi.
O Globo (Rio de Janeiro) 07/11/2004