Não tenho culpa de considerar Tartarin de Tarascon, de Alphonse Daudet, que transformou um dos livros mais satíricos e até mesmo debochados da novelística universal, numa obra fundamental para conhecer os labirintos do homem, as motivações de dentro que se expressam aqui fora, na comédia ou na tragédia do dia-a-dia. Pensando bem, não é outra a finalidade da literatura.
Citei há pouco o episódio de sua não-ida à África para caçar leões, caçada que não se realizou, mas que acabou sendo aceita e glorificada por todos, inclusive e principalmente pelo próprio Tartarin. Comparei a façanha não realizada à sinfonia inacabada da atual reforma ministerial, tão anunciada que nem precisa mais ser feita.
Contudo a melhor passagem do romance é um achado genial, juntando na alma de Tartarin, prestes a realizar e não realizar a sua extraordinária aventura, o conflito interior entre Tartarin-Quixote e Tartarin-Sancho. Bolação implícita em Cervantes, mas não explicitada.
A cena é a seguinte. Tartarin está com tudo pronto para ir caçar leões na África: rifles, pistolas, facas, facões, uma bússola para se orientar nas selvas africanas, uma tenda-abrigo para protegê-lo nas noites temerárias. Mas se debate interiormente, roído entre o instinto da grandeza e a mediocridade de sua vida provinciana. Em dado momento, Tartarin-Quixote grita para ele mesmo: "Tartarin, cubra-se de glória". Mas logo Tartarin-Sancho o traz de volta à realidade: "Tartarin, cubra-se de flanela".
Todo o drama humano está nisso, entre a glória e a flanela. É lícita a pergunta: quem ganhou o conflito interior na alma de Tartarin? A luta termina com Tartarin-Quixote gritando em sua sala, exaltado, o rosto afogueado pela decisão heróica: "Um machado, me dêem um machado!". Mas logo toca a campainha chamando a empregada: "Jeanete, traga o meu chocolate".
Folha de São Paulo (São Paulo) 24/03/2005