Texto de Mário de Andrade inédito em livro é sempre uma novidade. Como a deste volume chamado "O banquete", que restaura uma série de crônicas musicais por ele escritas semanalmente para a "Folha da Manhã" de São Paulo entre maio de 1943 e sua morte em 1945.
Sabe-se que o lado digamos didático de Mário era o mais forte de sua estrutura de escritor. Ao escrever, tentava ensinar. Havia, em tudo o que transformava em palavras, um intuito diretamente educativo: queria que o leitor aprendesse o que estava no seu texto. Além de professor, também era líder. Como tal, dava toda a sua atenção a um poeta desconhecido que o escrevesse.
Costumava responder a cartas que recebia de todo o Brasil, de jovens no começo de atividades literárias. Temos hoje, publicada em livro, a correspondência que manteve com o jovem Fernando Sabino, ainda morando em Belo Horizonte e sem obra publicada. Mesmo como autor de romances, era Mário um professor. Ao escrever "Macunaíma" e "Amar, verbo intransitivo", estava ensinando a fazer romance.
O rompimento com o passado, contido no movimento de 1932, fora grande; era preciso erigir uma nova lei, um novo código, e Mário de Andrade resolveu ocupar-se dessa tarefa. Líder e professor, dedicou-se a uma série de estudos parecidos com os que haviam atraído Sílvio Romero.
Uma parte do movimento modernista combatia o folclórico, mas, para Mário, o País estava aí, com sua cultura popular, sua realidade, seus modismos, sua pintura, sua musica, sua confusa mestiçagem de influências, e havia necessidade de que o escritor brasileiro saísse em busca de suas raízes.
Estaria "O banquete" a serviço, também, desse propósito?
Mário imagina, em suas crônicas, uma cidade chamada Mentira, cujo subprefeito, Felix de Cima, comparece a um banquete dado pela milionária Sarah Light, que para ele convida também o compositor Janjão e a célebre cantora Siomara Ponga. Estes são os personagens da história e de seus diálogos. Pois diálogos são, desde Sócrates, o modo mais perquiridor de iluminar um assunto e uma tese, tornando-os visíveis.
Discute-se obra social, arte para o povo, e um dos interlocutores diz: toda arte é social; o soneto, a sonata, a pintura de uma paisagem, uma estátua. Outro fala na "leitura" e explica: "Você "lê" um quadro de Portinari, mas também a música entra nos diálogos, inclusive através de compositores que não se acham no primeiro time dum Beethoven, dum Palestrina, dum Rameau.
De repente, não mais do que de repente, passa o assunto a ser bebidas, com Felix de Cima defendendo a pureza do Porto e dizendo: "O cocktail" é uma verdadeira imoralidade." As bebidas "misturadas" tiram a dignidade intrínseca do álcool. O debate avança e entra no capítulo do "de-comer", com frases sobre as carnes e os vegetais, mas logo volta à música e à pintura, aos "azuis" de Portinari e ao "ritmo" de quadros famosos, que parecem versos decassílabos ou, conforme o caso, de cadências menores.
Inesperadamente, no meio de um diálogo mais quente, Mário de Andrade joga três palavras sobre os que falavam; "Um silêncio explodiu". O encontro se aproxima do fim com uma descrição do que se comia: "Tinha alface muito clara, tinha tomate e casca ralada de maçãs. Isto é, tinha todas as vitaminas salutares, em graduação inexoravelmente científica, determinada pelos laboratórios norte-americanos, isso tinha. A saúde estava superviso-raramente contemplada ali. Mas tinha também pecados, vícios, derrapagens de bom gosto, e místicas de todas as religiões. Tinha leite de cabra, por causa de Gandhi; tinha porco, porque era o bicho nacional dos celtas, cantado nos poemas bárdicos; mas biblicamente separado de tudo, em cápsulas finíssimas de trigo por causa das cóleras possíveis de Israel. Tinha gemas de ovo; libertas da albumina perigosa das claras, levemente tingidas de suco de pedregulho. E tinha sorvete de creme, e avelãs recobertas de cacau sem açúcar. Enfim tinha de tudo, e o Mundo Musical não sabe enumerar estatísticas de sabores úteis e prejudiciais." No começo da lista havia Mário informado que tinha também "perdiz desfiada, fortemente passada".
Este era o banquete que a milionária Sarah Light oferecia naquela tarde de domingo, na sua vivenda em Mentira, a simpática cidadinha da Alta Paulista. Espero ter dado uma idéia do maravilhoso texto que Mário de Andrade deixou, até às vésperas de sua morte, nas folhas de um jornal paulistano. No meio da narrativa, que narrativa é, e de extraordinário ritmo, há nela toda uma discussão, primorosamente apresentada, sobre Poética e Estética, em mais uma e derradeira aula que o bruxo paulista nos legou.
"O banquete", de Mário de Andrade, é livro de leitura obrigatória. Lançamento oportuno da Editora Itatiaia. "Orelha" de Gilda de Mello e Souza. Prefácio de Jorge Cole e Luiz Carlos da Silva Dantas. Capa de Cláudio Martins.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 09/11/2004