A eleição do deputado Antonio Carlos Biscaia para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara marca a reação nítida do PTB neste segundo tempo do mandato com vista à conservação do recado e do perfil eleitoral do PT, no dizer a que veio para a mudança brasileira. Fora da Mesa da Casa o PT apetrecha naquele órgão básico da tramitação legislativa a marca do comportamento ético e da vigência das prioridades brasileiras frente à vitória inesperada do baixo clero na ameaça de retornarmos ao país da cosanostra. Só se reforçam os piores presságios da anedota chegada ao grotesco, da madrugada da consagração dos Severinos no terceiro poder da República. Não se tratou de quebra-de-braço ideológica, nem de mudança consciente do peso de poder, nem de articulações distintas do a que vem, para valer, como hoje se espera, o exercício da vontade política. Só se somaram, no lusco-fusco ainda do raiar do dia, quando ainda são pardas todas as alianças, o exercício mais escancarado do fisiologismo ocorrido no núcleo mesmo do primeiro poder do povo, no seu fazer de futuro.
Toda opinião pública do País só confirma as piores expectativas em que os deslates dos novos personagens generalizam um sentimento popular sobre o poder legislativo, empurrado ao pólo oposto do que pede um país da mudança. Mesmo que todos os physiques de role ajudem, no reconhecimento de todos os Severinos, é a forra anônima do Brasil arcaico que aí está, e não perdeu tempo em sua entrada imediata em ação. Toda a Mesa da Câmara retrata o País oposto ao Brasil de Lula. Mas o inequívoco do seu comportamento predatório talvez acelere, por contraste, diante da opinião pública a remoção destas bancadas de antanho. Ou, em caso contrário, a desmoralização do Congresso, no quanto refrear o imperativo da transformação social plebiscitado em 2002.
No cargo mais importante do Congresso para a real tramitação da máquina legislativa, Biscaia sabe por onde retomar a iniciativa do país da esperança. Vai direto à tarefa de dar curso às reformas de fundo, que são a contrapartida institucional da opção por Lula. Sabe, inclusive, o deputado fluminense que não são nos corpos das legislações exaustivas, por si mesmo, que se logram o candente e urgente da mudança. Mas da garantia daqueles preceitos que são o nervo exato da mudança muitas vezes disfarçado, senão perdido na enxúndia dos textos.
O novo presidente da Comissão de Justiça já fixa esses pontos nucleares, contundentemente. Às vezes até para mostrar que a solução definitiva não está na lei exata, mas na reforma gradual e paciente que a mesma presume do País. De imediato, por exemplo, e em termos da reforma política, sempre existirá um caixa 2 a assegurar a força do poder objetivo e da corrupção na escolha do candidato da vez que pede o status quo. E tal para permitir crescentemente o entremeio da estrutura das legendas com a máquina do crime organizado. As novas medidas de reforma partidária procuram fechar o cerco aos nossos arcaísmos políticos. Mas continua o escape, e a tarefa do bom legislador é redobrar o cuidado com a recidiva, em tantos novos subterfúgios, da conduta proscrita pela lei. Biscaia entende também a dificuldade de se começar, e logo, o novo processo eleitoral, através da adoção, pelas legendas, do sistema das listas prioritárias de candidatos. Como dar a partida no novo regime, sem que caia no círculo vicioso da escolha dos cabeças de chapa através dos caciques dos partidos, não da força objetiva do candidato diante de seus eleitores?
Não há como esperar mais um pleito, repete Biscaia, para começar a mudança, como quer o baixo clero. Aceite-se, então, sem mais delonga, como primeira lista, a da atual posição dos eleitos no último pleito. E que daí por diante, num arranque que escapa às manipulações de cúpula, possa compatibilizar-se a força eleitoral à identidade do partido e sua ação parlamentar.
Mais importante, talvez, na recuperação da expectativa petista original - seja o empenho de combate às trampas imediatas com que o baixo clero no poder pôs toda efetiva mudança em banho-maria. Pode o presidente da Casa bater o martelo que é só seu, no condicionar o trânsito do voto, à preliminar dos pedidos de urgência urgentíssima. E esses ficam na dependência da manifestação em plenário, do peso das maiorias que os apóie. E, estes, do controle do painel de votos, a partir da contabilização dos deputados presentes às sessões, e especialmente da quinta-feira já da revoada em bando dos parlamentares aos seus ninhos. O que se vê agora, no reino dos Severinos, é a possibilidade de se bater o ponto da presença desde as 8 da manhã, ficando a suposição do comparecimento por todo o dia, mesmo já tenha o parlamentar batido asas para casa.
Neste regime de atropelo de pautas denunciado por Biscaia, a Câmara trabalha com maiorias fictas, no gozo de uma cumplicidade generalizada, diante do que o deputado cobra o basta do PT pedindo as verificações de quórum. Mas sabe que o baixo clero conta com os pactos de silêncio, não tem partido, confia na caluda generalizada, e na cumplicidade dos tapinhas nas costas, do "deixa para lá", e da confiança na aguerrida desmemória do povo cá fora. Biscaia veio para desarrumar esta modorra da inércia consentida do Brasil que optou por Lula, para não permanecer como o País dos Severinos.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 25/03/2005