Desde que a sociedade passou a defender valores politicamente corretos, não mais se malha o Judas como antigamente. Acredito também, mas sem certeza, que os manuais da Redação de todo o mundo igualmente condenem a velha e gostosa prática da malhação daquele que passou à história (ou à lenda) como o símbolo maior da traição. (Ia dizer "emblemático da traição", mas preferi a fórmula de outros tempos).
E, por falar em outros tempos, nos sábados de Aleluia, como o de hoje, pelo menos aqui no Rio, não havia rua que amanhecesse sem que, num dos postes, lá estivesse o espantalho feito por mãos anônimas, mas coletivas, com um cartaz pregado no peito, onde se lia o nome do Judas e os motivos que o levariam à malhação tão logo os sinos ressoassem nas igrejas, anunciando que o Senhor ressurgira dos mortos.
Ia com o pai ver os Judas do bairro. Acho até que ele era responsável por alguns, fazia o gênero dele. Havia Judas caprichados, vestidos a rigor. Outros avacalhados, com trapos por dentro e por fora. E havia os "testamentos" do Judas, que os explicavam. Geralmente eram comerciantes do Lins, donos de armazéns e quitandas, de malignidade limitada a certa rua. Mas havia Judas que transcendiam ao bairro: políticos, autoridades. Durante a guerra, de cada três postes, um era de Hitler. Havia também alguns Plínio Salgado.
O Judas que mais me impressionou foi na rua Cabuçu. Além de ser um espantalho como os demais, tinha na testa dois chifres de verdade, tirados de algum bode das vizinhanças. Tratava-se de um corno ostensivo e parece que assumido. Diziam que surpreendera a mulher dele embaixo do Sacadura, um personagem recorrente que consta em pelo menos dois romances que fiz por aí.
Esse Sacadura, para honrar o nome, era também um sacana. Na rua Cabuçu, a ofensa maior não era ser chamado de filho daquilo, mas filho do Sacadura, o que dava na mesma.
Folha de São Paulo (São Paulo) 26/03/2005