O caso da moça que deseja morrer por estar há anos numa vida vegetativa transformou-se em assunto que empolgou a opinião pública mundial, o governo e o Judiciário dos Estados Unidos, autoridades religiosas de todos os credos, cientistas e curiosos em geral.
Basicamente, discute-se a legalidade de se tirar a vida de alguém que tecnicamente está morto. Além do mais, a própria doente havia implorado, diversas vezes, em surtos de lucidez no passado, a clemência de que a matassem.
A sociedade é puritana e o puritanismo é hipócrita. Pode-se até afirmar que o fundamento do puritanismo é a hipocrisia. Talvez esteja exorbitando na analogia. Mas vou dar um exemplo da contradição desse prurido legal. A pena de morte, que não aceito em caso nenhum, é legal em numerosos países, sobretudo naqueles marcados pelo puritanismo mais radical.
São diversos os modos de aplicar a pena de morte, mas dois deles, o fuzilamento e o enforcamento, nem sempre acabam com a vida do condenado. Precisam do tiro de misericórdia ou do puxão final que o carrasco dá no condenado quando o laço da forca, por algum defeito, não conseguiu quebrar o pescoço da vítima.
Em algumas legislações, a falha na execução livra o condenado da pena capital, dando-se a sociedade por saciada em sua fome de punir o criminoso, que cumprirá outro tipo de pena. Mas o tiro de misericórdia, desferido individualmente pelo comandante do pelotão, ou o puxão suplementar que o carrasco dá na corda, muitas vezes agarrando-se nas pernas do enforcado para lhe aumentar o peso, têm a finalidade de impedir o sofrimento inútil e até mesmo o sepultamento em vida. É, de certa forma, um benefício que o Estado presta ao condenado, evitando que ele sofra além da pena.
É legal enforcar ou fuzilar nos países que adotam a pena de morte. O sofrimento desnecessário transcende a pena. Abreviá-lo é um gesto humanitário.
Folha de São Paulo (São Paulo) 29/03/2005