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A vaca e o sonho

 

Podem não acreditar: nunca fui dado a alucinações, nunca vi fantasmas, nunca ouvi vozes, nunca vi disco-voador. Ultimamente, estou começando a duvidar de uma das minhas certezas pessoais: acho que estou entrando no perigoso terreno das visões.


Não se trata de santa Terezinha do Menino Jesus, que foi vista por um primo meu, nuns bambuais que havia no fundo do nosso quintal. Nem se trata de um dos sinais que o Paulo Coelho nos ensina a ver e a decifrar.


Trata-se de uma vaca, ou de um boi, nunca parei no canal a cabo o tempo suficiente para tirar a dúvida. Está sempre lá. No final da noite, costumo pegar o controle remoto para ver se descolo algum filme que me interesse ou que me descanse do computador ou dos livros. Mudo de canal vertiginosamente, tentando descobrir alguma coisa que valha a pena -o que é sempre difícil.


E eis que, a cada rodada de todos os canais, num deles, não sei qual, há uma vaca parada ou andando de um lado para outro. A noite passa, passa o dia, passam a semana, o mês e o ano e a vaca não sai dali. Parece a mesma, volta e meia exibe para nós a sua garupa, que não é palustre e bela como a daquela vaca que o poeta Jorge de Lima colocou em "Invenção de Orfeu".


Por falar em Orfeu, lembrei-me de Morfeu, noite dessas, em que estava sem sono e queria dormir. Tive preguiça de ir procurar um comprimido qualquer que me jogasse nos braços do deus do sonho. Fiz melhor: parei na tal vaca, tirei o som e fiquei olhando. Espantosamente, ela, às vezes, parecia olhar para mim. Um olhar doce, cúmplice, fraterno.


Dormi logo. Sonhei com catedrais, mulheres e palmeiras. Acordei de madrugada. Ela ainda estava lá. Acontece que, antes de mergulhar no sono, tinha a certeza de que havia desligado o aparelho. A vaca não se desligara de mim. Uma alucinação, sem dúvida, anúncio de outras que deverão estar a caminho, como as catedrais, as mulheres e as palmeiras que freqüentam meus sonhos.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 30/03/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 30/03/2005