Até que enfim deparo com um poeta brasileiro que descobre, aproveita e usa as palavras por inteiro, por dentro e por fora, nas suas vogais, nas suas consoantes - isto é naquilo em que a poesia - por ser cântico - se reveste de sons. Isto mesmo: sons, com seu ritmo e sua música. Sons - com suas vogais e suas consoantes da língua portuguesa, com seus "a", "e", "i", "o", "u" e seus fortes batimentos consonantais. É o que faz, em seu livro mais recente, "A rosa anfractuosa", o poeta Fernando Mendes Vianna".
Há muitos anos, quando foi publicado seu primeiro livro de poemas, destaquei, em artigo, esse lançamento como dos melhores de então. Com o tempo, vários foram os volumes de poesia que produziu, todos em nível que não desmentia o da estréia. No de agora, porém, vai mais longe e atinge a primeira linha da poesia brasileira de hoje. Sob todos os aspectos - revela sabedoria na escolha das palavras, no ritmo a que as submete, na variedade em que fabrica seus versos.
Nos de tamanho mínimo, como os do poema "Ao leitor amigo", concentra com precisão e brevidade suas sílabas: "A bruta luz que me circunda/ talvez te ofusque.../mas não te inunda." - logo em seguida volta à luz: "A luz te cega / e dizes treva./ A luz te cega,/ porém te enleva.". Indo terminar nestas linhas: "E a fome da alma / acalma, ceva. / Na lama neva."
Busca Fernando Mendes Vianna conceber também o soneto sob forma diferente e nada usual. Como neste quatro versos do "Soneto inútil": "Pandorgas ou papiros? Os poemas / talvez sejam apenas palimpsestos: / fantasmas nem fastos nem funestos, / em meio a togas musicais fonemas. "Ou nestes versos de "Lobo-cão": "Há um bicho bestando pelas ruas,/ sem saber se é lobo ou se é cachorro./ Uivando versos e olhando luas,/ percorre um dicionário enquanto morro."
A poesia de Fernando Mendes Vianna se aproxima também da "onomatopoética", técnica utilizada pelos poetas que mais entenderam o enigma do vocábulo poético. A palavra "onomatopoética" foi inventada em 1860 por Frederic Farrar no livro "Essay on the origin of language".
Três anos mais tarde, o poeta Gerard Manley Hopkins, então com 19 anos, sentiu que o domínio do ritmo vocabular estava no âmago mesmo do transformar uma frase comum num esforço para criar um mito. Adeptos de aspectos da onomatopoética foram Rimbaud, e, entre nós, Jorge de Lima que, no seu "A invenção de Orfeu", usa a vogal "u" numa série de versos da maior volúpia.
Existe um fundamento existencial, no mais amplo dos sentidos, em que Heidegger usou este adjetivo e suas variações (Existenziell, existenzial e ek-sistenziell) no tipo de verso usado por um povo. Nesse caso, passa o poeta a representar a sua gente, seja qual for a escolha que faça para seus poemas.
O que aparece agora, na poesia de Fernando Mendes Vianna, é uma liberdade no compor os versos que revelam toda uma força ancestral desta língua que, embora essencialmente portuguesa, ganhou sons e tons de uma série de influências que viemos recebendo enquanto lutávamos para criar esta Nação tal qual é hoje. Fernando Mendes Vianna, depois de "A rosa anfractuada", passa a manusear um idioma que é matéria verbal, vocal, oral, visível, signo, sinal, mastro e lastro de uma nova fase por que passa a literatura do País.
Como exemplo de um estilo que foge a qualquer concessão à facilidade, cito na íntegra o seu "Soneto ao poema", de estranha e também onomatopoética feitura, em que usa outra vez a palavra "palimpsesto": "Obrigado, poema, alavanca de paciência,/ potentíssimo palimpsesto, frágil pluma,/ pólvora de pólen que explode o pó/ e ala o corpo e sua urna plúmbea, / lançando ao mar a areiada ampulheta:/ Crisol-cratera de um vulcão-sepulcro,/ a rubra lava invade a caiada tumba / muda, e inflama o frio fâmulo / da morte, incendiando as ataduras da múmia / em línguas de um verbo de vaticínio./ Obrigado, meu poema, nota fora da pauta,/ grito de funâmbulo príncipe num escrínio,/ nauta por um fio no precipício,/ - boca do abismo onde a sílaba fala".
De vez em quando o poeta solta um verso que não se mistura com outros: "O poema se pensa e repensa". Ou: "Este azul do céu não me desvenda". Ou este começo de "Enigma": "Tudo o que o homem pensa ou sente / (ou pensa que sente), / passa rente/ à Lenda."
Ao longo dessa poesia de tom novo, não cai o poeta no preciosismo, com que às vezes se confunde a dignidade do poema. Sua linguagem é de uma digna rigidez, turbada pela emoção, mas rigidez sempre, que eleva seus ritmos a uma camada pouco frequentada pela nossa poesia.
"A rosa anfractuosa", de Fernando Mendes Vianna, é um lançamento da Thesaurus Editora, de Brasília. Prefácio de Anderson Braga Horta, outro bom poeta, que também escolheu Brasília para centro de sua atividade literária. A ficha técnica do volume informa ter sido a editoração eletrônica de Cláudia Gomes e a arte final da capa de Raytatto.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 01/02/2005