Esta nossa língua portuguesa, que do português nos veio, apanhando palavras aqui e ali, tirando-as dos africanos, que trabalhavam por nós, da população indígena que nos cercava e nos inculcava hábitos e sentimentos, inclusive de comer, de andar pelas matas, de se absorver no verde circundante, esta língua criou e continua criando obras escritas que falam por nós e nos representam. Depois dos versos de Jorge de Lima e da prosa de Guimarães Rosa, atravessamos o Rubicão e gritamos nossa liberdade de ir e vir no meio das palavras, das sílabas e dos sons e ganhamos um modo nosso de dar nomes às coisas.
Pois não é que nos surge agora uma narrativa inteiramente brasileira, colocada em palavras e frases que renovam o nosso modo de contar histórias. O livro tem o título de "Uma lenda". Seu autor é Alaor Barbosa, que publicara antes um livro de contos muito festejado, inclusive por artigo meu, aqui divulgado. O volume de agora é um romance. Nele, assume o narrador o papel e a voz de um menino vivendo brasileiramente, empregando palavras brasileiramente, dizendo "num" para "não", usando o "ocê", normal no interior de Minas e de Goiás.
Para o menino, Pai e Mãe estão acima de tudo, os colegas são brigões, Dona Henriqueta, a professora, escreve no quadro-negro com belíssima caligrafia, nem tudo era fácil, mas no mundo existia Belinha, diante de quem as coisas pareciam ganhar mais sentido.
Contando a história de um menino do interior de Goiás, traça o romancista o verdadeiro retrato do brasileiro quando jovem. Eis como o personagem se define para o leitor: "Andando depressa, me senti bem o que eu era: um menino de sete anos de idade, esperto, bom para correr, bom para driblar, inteligente (mais do que todos os meninos de minha turma no Grupo), bom para ler (pronunciava bem as palavras e falava com voz sadia e espevitada), filho de Seu Teófilo Ferreira Noronha e de Dona Celina da Conceição Santoro, e que morava ali na Praça do Campo de Futebol, Praça da Liberdade".
E como era a casa do menino? "Mãe andava pra lá e pra cá com as chinelas fazendo um chapechapezinho que gostava de escutar. O dentro-de-casa era seguro, saudoso, bom. Mãe inteirava a nossa casa com a presença boa dela."
Os diálogos de Alaor Barbosa são de absoluta precisão, conseguindo ao mesmo tempo fixar os personagens em suas posições no mundo em geral e no mundo particular em que estão inseridos. O que surge desse contexto é um Brasil como raramente vemos em livros, realistas ou de ficção.
Os acontecimentos da história se sucedem como água de regato, numa tranqüilidade narrativa que nos coloca em contato com um Brasil de ontem que, em muitas regiões, ainda é o de hoje. Vejam-se as descrições das aulas, com Dona Henriqueta falando, perguntando e os alunos mais ou menos com medo, o que estão os colegas pensando de suas respostas?
Sendo a história de um burgo interioriano do Brasil, é também o romance, praticamente, um estudo sociológico, com as aulas funcionando como flagrantes da vida brasileira no encaminhar nossas crianças de classe média na rota de um conhecimento básico de como são as coisas (conhecimento que, deve-se lembrar, não atinge os milhões de meninos e meninas que não freqüentam aulas de espécie alguma).
As cenas do livro que mostram os alunos perante a professora, o que dizem, o que pensam, o que lhes é perguntado, são páginas que revelam como o ensino primário é geralmente aqui administrado. O romance de Alaor Barbosa singulariza um modo de ser brasileiro numa comunidade definida, o que nos ajuda a imaginar os milhares de burgos em que os mesmos grupos escolares funcionam de maneira semelhante.
O romancista leva o menino pela cidade, num contato com outros habitantes, entre os quais não podia faltar o vigário, Padre Deodato, que dirige o curso de catecúmenos, jovens que se preparavam para a primeira comunhão. Há muitos anos que a primeira comunhão não aparece num romance. Vê-la agora no livro de Alaor Barbosa foi como deparar com um Brasil que parecia ter desaparecido, mas que sabemos continua existindo no que chamamos de "interior".
Problemas que aparecem na história de "Uma lenda": que dia da semana deve ser o do corte de unhas, ou que dia o Pai contará histórias ou quando a chuva cairia ou a necessidade absoluta de pedir a bênção. Usando a palavra "bença", ou a descoberta de que Pai e Mãe estão discutindo, nenhum dos dois levantando a voz, o assunto era outra mulher, o menino se espanta de que haja coisa parecida no mundo.
As últimas páginas de "Uma lenda" são de uma extraordinária e singela beleza, com possivelmente a mais comovente seqüência de amor na ficção brasileira do momento. O narrador-menino e Belinha figuram numa descrição minuciosa de relação de conhecimento, feita com delicadeza e antecedendo a tragédia, que tragédia foi, da madrugada seguinte.
"Uma lenda", de Alaor Barbosa, é lançamento da Editora LGE, de Brasília. Editor: Antonio Carlos A.Navarro. Coordenação editorial de Ana Cristina de Araújo Rodrigues. Diagramação de Marcus Polo Rocha Duarte. Da "orelha" constam opiniões de Assis Brasil, Ronaldo Cagiano e Wilson Martins.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 07/12/2004