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A rota de San Tiago

 

Fui convidado, em 1962, pelo diplomata Marcílio Marques Moreira para conhecer San Tiago Dantas. Com a curiosidade natural de jornalista e professor, visitei-o na residência da Rua Dona Mariana, em Botafogo, onde havia pelo menos mais 20 pessoas com o mesmo propósito.


O objetivo era saber a opinião do grande brasileiro, defensor da “esquerda positiva”, sobre a conjuntura política do país, que se apresentava de modo confuso, com o anúncio de reformas de base aparentemente descosturadas ou inviáveis.


Logo no começo, levei um susto com a afirmação de San Tiago: “Gostaria mesmo é de ser ministro da Educação. Poderia ser mais útil ao país. A primeira medida seria fechar todas as universidades existentes.” Se ele já tinha essa idéia, na ocasião, imaginem se ressuscitasse e se deparasse com o quadro caótico de hoje. Mas o tema não prosperou.


San Tiago traçou o quadro da nossa realidade, prevendo as chuvas e as trovoadas que acabaram por toldar o céu da normalidade institucional brasileira. Operou como se fora um competente prestidigitador. Com bons argumentos.


Lamentavelmente, deixou-nos aos 53 anos de idade, em 1964.


Foi realizado um Seminário intitulado “Atualidade de San Tiago Gomes”, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, com o apoio da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro e do Instituto San Tiago Dantas.


Raramente, viu-se tamanha demonstração de respeito e de amor a uma personalidade brasileira. Falaram Marcílio Marques Moreira, Luís Dulci, Celso Amorim, Celso Láfer, Mário Gibson Barbosa (que chegou a verter lágrimas com as suas lembranças do agradável convívio), Afonso Arinos e Adacir Reis (presidente do Instituto San Tiago Dantas).


Foram lembradas passagens de San Tiago Dantas na vida acadêmica, grande professor que foi da Faculdade de Direito, também a ação política, em que ele chegou ao cargo de primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores. Os caminhos de San Tiago foram sempre transparentes e bem delineados. Sua frase lapidar resumia-se no seguinte: “Deve-se tirar as coisas da obscuridade e levar à luz, com o emprego da inteligência .” Chegou a ser considerado talvez o maior humanista brasileiro do século XX. Saudado pelo acadêmico Celso Furtado, que mereceu o seguinte texto: “Com ele será possível alargar o espaço cultural em que se exerce a ação criadora do homem, para que possamos usar o dom da liberdade para a tarefa de redefinição de valores e identificação dos fins.” Merecer esse comentário do maior dos nossos economistas é uma honra única.


San Tiago escreveu um texto sobre D. Quixote: um apólogo da alma ocidental. Tratou o Quixote como símbolo, homem heróico, cujas ações frutificam pelo exemplo e pela força espiritual que irradiam.


No fundo, visando ao aperfeiçoamento da cultura, apresenta uma densa floresta de reflexões, discutindo o sentido e o valor da aventura do extraordinário fidalgo, com os seus sonhos impossíveis. Era o mais perfeito dos cavaleiros andantes, vivendo a dificuldade de separar adequadamente os limites da virtude e da loucura.


É de San Tiago a inferência: “O heroísmo do cavaleiro não está nos seus feitos, está nas suas disposições de alma.” E assim podem ser explicadas as suas visíveis qualidades: castidade, idealismo, desinteresse, sacrifício, bondade compassiva, mas isenta de emoção.


Tinha suas alucinações ou sonhos , como a clássica luta contra os moinhos de vento, mas sempre foi guiado pela integridade da sua incorruptível consciência. E assim ele se encontrou com o amor de Dulcinéia, símbolo e síntese do sentimento cavalheiresco. Viveu intensamente esse sonho ou o que o autor chama de enamoramiento. D. Quixote morreu com uma rigorosa fidelidade ao que se chamava de amor-paixão, que San Tiago Dantas soube interpretar no Brasil como ninguém. Não terá sido ele também, pela sua identificação, um D. Quixote moderno?


 


O Globo (Rio de Janeiro) 14/12/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 14/12/2004