Chegamos a meio caminho do mandato de Lula com o sucesso que quase troca os sinais de apoio ante a expectativa original do governo: as classes mais ricas aplaudem, mais até do que o eleitorado fidelíssimo que o levou ao Planalto. O resultado da dupla Palocci-Meirelles conquistou os novos apoios, que passam a ver no petismo em palácio a continuidade do tucanato. Mas os fiéis de todo o sempre confiam na guinada, acreditando que o segundo tempo será o do despontar de uma social-democracia, para além das restritas receitas cobradas pela dinâmica da globalização. Foram-se os primeiros radicais sem em nada despovoar o pombal petista, mas nas antecâmaras imediatas começaram os distanciamentos. Sinalizaram, mais que a ruptura, o aguardar do começo da diferença, a sair das areias movediças do que está aí.
O avanço hegemônico mundial e a massa de condicionamentos financeiros e econômicos nos devolvem, sempre, ao quadro liberal mais estrito e aos jogos do mercado, em que nos capacitamos, de vez, de que não temos projeto, só conjuntura. A esse vaivém condenara-se o governo anterior. Mas o ex-presidente, nos seus augúrios de fim de ano, expôs Lula ao crivo do até onde foi adiante ou teria ficado aquém do seu antecessor. No entender de FHC, por exemplo, o Bolsa-Família de seu tempo deu mais certo e foi mais longe.
Os pontos ganhos de Lula não avultam por enquanto, continua Cardoso, e os anticlímaces dos presentes resultados decorrem de confundir o combate à fome com o combate à pobreza e a distribuição de renda com o efetivo acesso à prosperidade. Recuamos? Manter o atual desempenho já é um sobreesforço, pois os sistemas globais ampliaram seus controles e é, só agora, com a melhora do superávit primário e com o aumento do PNB, que Lula começa a vencer a inércia recorrente. Sua cunha é a da ação do Estado para sobrepor-se às estritas dinâmicas do mercado e da aposta no trunfo do consumo interno das populações subcontinentais como a nossa, catalisando o esforço conjunto da poupança pública e privada, como prometem a iniciativa das parcerias recém-aprovadas no Congresso.
A popularidade do presidente paga, ao mesmo tempo, o preço desse paradoxo. Lula chega ao segundo tempo do mandato com inédita maioria parlamentar. Quebrou de vez a estrutura dos partidaços, tornando praticamente impossível a recomposição do PMDB, que se quer como dissidente. Metade do partido fica no ninho tépido do poder e a alquimia situacionista embriagou, fora o PFL e o PSDB, todas as demais legendas. Essa força dos plenários, entretanto, se desenfreia e volve-se até contra o presidente. A vitória chocante e inequívoca de Severino Cavalcanti instaura o baixo clero no comando da Câmara e no imediatismo cru de seus interesses.
Que social-democracia, afinal, pode Lula propor num cenário mundial em que o bis de Bush refinou com o advento de uma hegemonia, sem retorno, de modelos e lógicas de futuro? Nesse quadro de busca da alternativa, impõe-se um exercício cada vez mais severo de realpolitic diante da quase rigidez do palco histórico contemporâneo. Aí está o arrefecimento geral, a partir de toda a União Européia, do socialismo aquietado na social-democracia como diferença com o status quo possível ao estado atual da arte e da procura de outro caminho. Perdemos entre nós a sintonia entre a mobilização popular e um projeto de mudança, como fez Juscelino com o Plano de Metas e o condensou na criação de Brasília. O anúncio da transferência das águas do São Francisco teria ainda o mesmo papel de sideração do imaginário para a mudança?
A confiança solidíssima no presidente só se abalaria se, por exemplo, no plano dos direitos humanos, não viesse a cobrar, como o fez, a resposta cabal à abominação e à impunidade do assassinato da madre Dorothy Stang pelos grileiros da Amazônia. Até quando ficarão vivas as testemunhas do disparo de seis tiros na vítima após o estraçalhamento da cabeça pela bala da pistola 45?
Os dois brasis não estão se encontrando de costas no apoio ao governo Lula. E, afinal, não é só a descompressão política que se pode definir como lenta, gradual e segura. Também o logra a transformação coletiva, assentada na estabilidade do último biênio. O governo Lula não teve o talhe de ferrabrás da mudança nem do lance temerário. Mas ganhou o cacife e o tempo para dizer a que veio.
Folha de São Paulo (São Paulo) 16/02/2005