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O Haiti que nos espere

 

O coloquial, tão próprio da identidade latina, encontra na matriz haitiana um adensamento inesperado. Nasceu o país de um levante escravo, num quadro de ruptura sem memória ou invocação do passado. E todo prospectivo, por aí mesmo, num grau de simultaneidade agressivíssima com o padrão da época, tanto a guerra de independência de Toussaint L"Ouverture ou de Christophe os projetou no maior fastígio da era napoleônica.

As identidades se fazem de logo a partir dessa quase intoxicação com a conquista do poder e o direito a ombrear-se com o imperador, em Paris, de irmão a irmão, nas cartas, cujo intimismo leva ao espanto e à rejeição do corso. É toda a toalete, o garbo, as insígnias e cocardas e, sobretudo, o chapéu da grand armée que imanta de logo o imaginário dos homens de Cap Haitien, de Gonaives e de Port au Prince. Muito, subseqüentemente, da irritação de Napoleão com Toussaint nasceria da insolência dessa primeira assimilação.


A derrota e a prisão, a seguir, no gelo das montanhas do Jura, onde morre o herói haitiano, refletem esse castigo exemplar do crime da comparação. Mas esta perseverou como o referencial fundador do Haiti. Os uniformes do esplendor de Paris seguirão no garbo dos sucessores dos quatro pais da nação - Toussaint, Dessalines, Christophe e Petion -, chegando à réplica da sagração napoleônica, no esmero do cerimonial de Faustino I e da Imperatriz Adelina. As miniaturas, jóias, brocados, pérolas, coroas, são reproduções meticulosas, que, inclusive, podem dar seqüência aos cenários espetaculares nos quais o Haiti independente é o dos palácios e bastiões portentosos, erguidos como pirâmides, na Fortaleza de Cap Haitien, ou no Palácio Saint-Souci.


É como se o surto desse ombrear-se com a metrópole cancelasse qualquer outra instância identificatória dos ex-escravos saídos diretamente para o prodígio da pompa. É, na verdade, num gesto munificente, que Cristophe ajudou Bolívar na Colômbia e as primeiras cortes a continuaram a sustentar uma identidade por figuração e espetáculo, a buscar, subseqüentemente, o condão da "civilização da festa" e da imantação da hora, a ativar esse inconsciente coletivo, pela fusão no grupo, antes do vis-à-vis decorticado, nos labores do cotidiano.


Competição


Essa especialíssima identidade sobreviveria ao fracionamento sucessivo dos impérios ou reinos locais, e à cisão política final da ilha de São Domingos, reunificada por Boyer e de novo repartida no cantonamento oriental do povo haitiano. Este país barricado dentro de si mesmo passa indene, a seguir, pela ocupação militar americana e pela sucessão frágil das Presidências civis da hora. No quadro que refugara a instalação institucional do Estado, o aparelho de poder fica a prêmio de quem o arrebate, sem mais, dentro da implacável disputa grupal. Mais que a privatização da ordem pública, o que aí irrompe é a competição pelo mando, visto como uma proeza consumada que prescinde, inclusive, de qualquer legitimação aparente para instalar-se. Vive das sucessivas investiduras, refeitas como dinastias do instante, qual a de Duvalier como a garantia perpétua contra a desordem.


Essa civilização da festa elabora o crioulo na sua mescla fervilhante e produz uma intelligentsia refinadíssima, de melhor entrada na metrópole e na vida do espírito contemporâneo. Multiplicam-se as presenças haitianas em organizações internacionais, como a do atual presidente, Gérard La Tortue ou do antigo embaixador na ONU, Jean Casimir, e o pf. Trouillot, hoje expoente da Universidade de Chicago. Mas, basicamente, é no nível da expressão espontânea desse inconsciente coletivo, ao seu modo celebratório, que se encontra e se reconhece, à margem do evento político, ou do que nele mirrou, como uma clássica estrutura de serviços, acompanhando a expectativa da natural modernização da vida pública e da ação do Estado. Golpes de Estado, marchas a palácio, paradas de um gigantismo saído de mil dédalos não fogem da rotação das facções e clientelas do poder. A estátua de Aristide, uma pomba na mão, continua de pé.


É dentro da mesma remessa às proto-histórias africanas e às suas distintas reformulações que a subjetividade caribenha e a brasileira ganham uma mesma porosidade. No caso haitiano, por se largar do lago Atlântico, ou das costas d"África e, a seguir, da própria prisão insular, alastrando-se nas Antilhas para chegar à Guiana. Em terra firme, mal se começa a deparar o nosso Pindorama. Demorou, aqui, o afro-Brasil mais de 80 anos que o Haiti para a abolição na proeza de 1804. É agora que se encontra com o povo de lá o país que venceu politicamente a exclusão com Lula em 2002. Entre a tropa da paz e o jogo retumbante dos campeões do mundo, recebe-nos, de par em par a nação de Toussaint L"Ouverture.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 18/02/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 18/02/2005