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Sábado muda tudo

 

Chegou, ai de mim, ai de vocês, a hora da crônica de fim de ano. Antes, não sei bem como, escapei à de Natal, devo ter aplicado algum golpe. Mas a de fim de ano parece que não tem jeito. Bem que tentei, embora confesse que sem fazer o tremendo esforço de reportagem que talvez alguns, equivocadamente, esperassem de mim. Nós, anciões, nos recusamos a fazer qualquer esforço de reportagem, a não ser os necessários para aparecer no Fantástico aos 93, malhado, de sunga sem camisa, mostrando os troféus ganhos nos Jogos Matusalém da Flórida (notadamente a Copa Santa Mônica, dada ao possuidor do maior número de dentes naturais - no caso quatro, novo recorde sul-americano) e deixando os chifres no quarto do hotel para posar ao lado da bela esposa de 24, que, por sinal está grávida - o que não fazem uma boa qualidade de vida e, principalmente, um personal trainer competente.


Mas procurei um bocadinho, sim. Saltimbanco das letras, é do meu ofí-cio procurar oferecer, a um público consumidor cada vez mais exigente (exigente nada, é brincadeira; já estou por aí há décadas, desde o tempo da Cofap, e nem no Procon tem uma queixa sequer), o melhor que posso. Literariamente, procuro dar uma caprichada de vez em quando, uma aliteração esperta, um hiperbatozinho provocante, uns quiasmos sestrosos e assim por diante, se bem que a concorrência anda dura e, em questão de metáfora, por exemplo, se não fosse o Homem estar tão interessado em manter o nível de emprego, eu já ti-nha perdido o meu, porque ele é craque na matéria e eu ainda estou estudando para aprender e talvez nunca chegue lá - falar sem dizer nada demanda talento, é para quem pode, não para quem quer.


Não achei nada. A data na História é até meio chata, porque bati logo o olho no dia do início do julgamento final de Luís XVI, em 26 de dezembro de 1792. Não quis prosseguir, isso é muito chato, até porque a História, sempre revisionista, hoje parece mostrar que o pobre Luís Capeto era boa pessoa e cheio de excelentes intenções, mas carecia do abundante tutano necessário para encarar as reformas que, sei lá, poderiam ter preservado mais ou menos o regime. Discussão acadêmica, cortaram a cabeça dele menos de um mês depois e especular é bobagem. Mas não fica bem lembrar guilhotinamentos as-sim num domingo de fim do ano, não é uma conversa apropriada ao clima festivo que devemos manter.


Ainda mais que a coisa está para festejar mesmo. Já dá para deixar o sujeito zonzo, ver como o Brasil entrou de repente numa boa, estava tudo errado antes. O presidente, que, por sinal, estréia o avião creio que logo no começo do ano - eta sensação, a pessoa deve precisar fazer força para não dar uns pulinhos, deve ser um barato mesmo, vamos reconhecer, qualquer um ia curtir e já pensaram no serviço de bordo? - disse que à frente é céu de brigadeiro e mar de almirante. Faltou uma imagem para o general, mas alguém acha uma em estoque, ou inventa, porque nós, o pessoal de terra, não podemos dizer que nos aborrecemos, mas nos sentimos esquecidos. Daqui a pouco deve sair uma boa imagem para quem permanece no chão, esse governo não falha. Chão para infante reumático, ou qualquer coisa assim, acaba saindo.


Nem fome o povo tem mais, essa menina! Era tudo invenção de comu-nista, afinal. Essa turma é de lascar, vira e mexe a gente descobre alguma coisa inventada por ela, como esse negócio de que aqui tem gente passando fome. E, vocês vejam, quem era que ia suspeitar que um desses comunistas sem-vergonha era Pretinho, do Mercado Municipal de Itaparica, peixeiro estabelecido e capitalista de responsa, que sempre foi homem de apoiar publicamente a direita democrática? Foi Pretinho, há muito tempo lá na ilha, que me veio com a conversa de que, no Alto de Santo Antônio, tinha muita família passan-do a jacuba, ou marialígia, não me perguntem por que esses nomes. Jacuba é o seguinte. O sujeito não tem dinheiro para café, ou então tem só para um pouquinho, mistura esse pouquinho com pó de chicória ou o que achar por perto, junta uns gravetos, faz um fogo e o “café”. Adoça, quando pode, com rapadura, que, por sinal, é até menos maléfica que açúcar refinado, até nisso o pobre dá sorte. E aí taca farinha dentro, mexe bem mexido para a farinha não descer e engole tudo. Dizem que engana bastante os estômagos da família.


Tudo mentira, descubro agora. Nós somos, isso sim, um país de comi-lões balofos. É doença, urge que façamos alguma coisa, não podemos continuar enfrentando riscos e passando vergonha. O governo agirá de pronto, criando, por medida provisória (permanente), a Contribuição Provisória (Permanente) sobre Transações Alimentares, envolvendo qualquer movimentação de gêneros alimentícios. E se criarão impostos altíssimos sobre tudo o que engorde, inclusive rabada com polenta e mocotó com pirão. Pode doer a princípio, mas a saúde do nosso povo está acima de tudo, como demonstra a toda hora o sistema vigente. Novo programa: Rango Zero. Novo projeto: Inanição-família. Novo programa de saúde: Vá-de-bolinha, distribuição gratuita de moderadores do apetite, no posto de saúde mais próximo de você, Disque-Anfetamina. Novas premissas: Panela vazia para todos, anorexia participativa. Novo slogan: “Fecha a boca, Brasil!”


Imprevidente que sou, me excedi, gastei todo o espaço e não cheguei nem a roçar no oceano de felicidade em que vamos mergulhar, já a partir do próximo sábado. Quantos empregos foram criados? Perdi a conta. Quantos serão? Também já perdi. É, não vamos perder tempo com essas ninharias, va-mos é aproveitar tudo isso que o governo já nos deu, abandonar a preguiça, fazer a nossa parte e deixá-lo em paz para cuidar da reeleição.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 26/12/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 26/12/2004