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O testamento de Celso

 

Lula tocou para Celso Furtado horas antes da sua morte, explicando a demissão de Carlos Lessa, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O presidente assumia, por inteiro, o risco do lance, e queria tranqüilizar nosso economista maior quanto à perseverança de rumo.


Ninguém como Celso, na toada desses últimos meses, insistiu pelo norte do desenvolvimento e do como vencer as areias movediças neoliberais. O governo anterior não superara a condição - frisou o próprio Fernando Henrique - de só termos conjuntura e não projeto, diante do mercado internacional.


O Partido dos Trabalhadores insiste na transformação social, sob a vontade do Estado - sabedor de que não saímos do labirinto, entregues à inércia do mercado.


Nem Celso nem Lessa são réus de uma política fóssil ao sabor do juscelinismo, mas as vozes deste encaminhamento, ainda no mandato de Lula, para a nossa definitiva viabilidade. Esta que tem no mercado interno a sua grande dinâmica e poder.


A última lição de Celso insiste em que não se trata de fechamento de fronteiras, nem de um ideal autárquico - este sim, inteiramente superado e foco do ataque em que a ortodoxia internacional desfigura, a longo prazo, o PT no poder.


O melancólico impasse de Vicente Fox no México, na perda das ilusões quanto ao mercado comum norte-americano, deixa-nos como o único país, em nossas periferias, em que a dimensão continental garante um vetor efetivo de reorientação final da economia - repetia Celso.


O reaparelhamento dos investimentos estratégicos do Estado; a revisão das privatizações, feitas com financiamento da nossa poupança forçada - como o caso da AES em São Paulo - e ameaçadas de ficarem nos seus pagamentos ao deus-dará; a conservação do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), dinheiro do trabalhador, para os empreendimentos sociais, aí estão, entre os marcos do timão assinalado por Celso e realizado por Lessa no BNDES. Firmam a última visão do norte petista, reiterado pela caução presidencial ao pensador falecido.


Não há precedentes de economia de nosso porte, a querer se desgarrar, de fato, da vala comum da conjuntura e seu enleio. Pouquíssimos países podem negociar uma situação consistente, de vantagem no universo global pelos trunfos da força potencial de seu mercado interno.


É a caminho deste rumo, tão determinado quanto desconhecido, que Lula segue o testamento de Celso. Mas reserva-se a arbitragem categórica do que seria o limite da dissidência criativa no Planalto.


O presidente só reitera esta marca da democracia profunda do PT, diante dos desgastes da prática política. Já sofreu o desfalque dos seus puristas radicais, como vê agudizar-se a distância de amigos de fé, reiterando a confiança em Lula, mas se afastando do governo.


Deixam-no no córtex do mandato e do aproar do seu segundo tempo, a enfrentar os restos da confiança programática original e o conformismo com o fato consumado do mercado.


O novo, caminhando para o inédito, aí está. Todos os sinais de recuperação garantem o êxito da fórmula Palocci, para o arranco do desenvolvimento e a força da guinada. Neste fim de ano deparamos o percentual, visto como recorde, de 7,72% de aumento de empregos, com carteira assinada frente a 2003; ou o de 36% de superávit externo. Toda reavaliação do ativo eleitoral do PT mantém intacta a força presidencial, com absoluta liberdade para remanejar o ministério.


O governo petista levou as suas coalizões a um amálgama. O PTB e o PL não têm como sair do útero do Planalto e o PMDB, preso à tenaz governamental, se rachar, não recupera a sua unidade anterior. Sua facção progressista ao integrar o governo não se acomoda mais a uma mera política de clientela, deixando, de vez, os grotões para o PFL.


Um Brasil para si mesmo sabe do seu tempo, e da sua agenda histórica para fugir das somas algébricas do ganha e perde global. Não foi outro que o bordão do velho Hino da Independência, das estrofes de Pedro I, o que se ouviu à beira da sepultura do pensador. Entoado, de saída, por popular sindicalista, terminou em palmas: nada mais haveria a dizer, no que cumpra como testamento de Celso ao país de Lula.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 27/12/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 27/12/2004