Um dos aspectos mais ridículos da mídia é que, em linhas gerais, ela deixou de se pautar pela realidade, trocando-a pelas manifestações periféricas da TV, do cinema e, pasmem!, da própria mídia. Quando um repórter sugere determinado assunto em reunião de pauta, recebe pronta aprovação se, em vez de partir da realidade escancarada à frente de todos, ele invoca um filme em cartaz, um determinado momento da novela que está dando ibope, um disco que será lançado e cujo marketing empurra pela nossa goela uma transcendência inexistente.
Em linguagem cifrada, adotada nas redações, chama-se isso de "gancho". Sem gancho dificilmente um repórter emplaca a sua matéria. Cria-se assim um círculo vicioso que logo se transforma em círculo viciado. Um filme sobre Alexandre, o Grande, é gancho para qualquer matéria sobre homossexualidade. Se, no Big Brother, um personagem diz que gosta de buchada de bode, surgem receitas de como preparar o saboroso prato, que alimenta inclusive campanhas eleitorais.
Dois filmes estão em cartaz abordando, cada qual à sua maneira, o problema da eutanásia. Domingo passado, todos os jornais aproveitaram o gancho e publicaram extensas matérias e entrevistas sobre o assunto. Nenhum argumento novo, nenhuma abordagem original. E o mais gozado é que a ficção (os casos inventados ou não do cinema) é levada mais a sério do que os casos da vida real, que acontecem todos os dias, que devem estar acontecendo no momento em que escrevo esta crônica e no momento em que um hipotético leitor a estiver lendo.
Pautada por ganchos muitas vezes forçados, a mídia geralmente cai na esparrela armada nos bastidores dos lançamentos de filmes, novelas, discos, livros e shows.
Da eutanásia pulo para o Severino. Nunca falaram dele, mas, para espanto da mídia, ele existia.
Folha de São Paulo (São Paulo) 23/02/2005