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Bush bis, sem trégua

 

É difícil se encontrar passagem de ano onde os jogos de uma realpolitik fechem de maneira tão clara o futuro lá fora. A ida de Rumsfeld a Bagdá, o aperto de mão, duro, os mesmos semblantes baços, os mesmos ritos, marcam a percussão do mesmo, transposto já ao simulacro. Repete-se o rito pelo secretário da Defesa, após o presidente, o ano passado, como se se baixasse à instância das rotinas, sem ilusões de mudança. Nenhum afrouxamento do petrecho militar no Oriente Médio. Nem alteração do projeto da redemocratização com maiorias sintéticas, por mais que somem os atentados, e se amplie o pessimismo das Nações Unidas quanto à legalização formal do regime, como relevante para a paz efetiva no Iraque. Claro, aí está, quase como mecanismo automático, o do gesto de congraçamento após o 20 de janeiro, que levará Bush a Bruxelas, e às alvíssaras de conversa com a outra ponta do Primeiro Mundo. A queda pertinaz do dólar está muito longe de apresentar, ainda, qualquer risco estrutural da boa entente econômico-financeira dos dois lados do Atlântico.


Forte de seu êxito, a nova atitude credora européia frente a Washington capitaliza o bônus político, ao ampliar o velho continente a sua responsabilidade num novo jogo de blocos, resultante da perenização da presença americana no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, esvai-se o intento britânico de mediação entre os dois pólos do Ocidente, pelo desgaste de Blair, num momento em que a Espanha de Zapatero reforça as cartas do eixo Paris-Berlim. Por outro lado, essa Europa-Europa apruma a sua identidade, exposta hoje não só a esta pressão do Leste, docilíssimo a Washington, mas ao avanço das regras do jogo da modelização democrática, já chegadas à Ucrânia.


O último confronto na televisão entre Yushchenko e Yanukovich se fez nos trinques do face a face do debate presidencial americano, e a chusma dos observadores internacionais estabeleceu uma lógica quase compulsória de desfecho - por sobre o jogo objetivo de tensões internas, que se decidissem por maiorias sofridas e reais, no corpo a corpo do voto. Numa lógica externa ao país, estabelece-se um jogo de presunções, na certeza da fraude fatal de todas maiorias que não correspondam a um diktat de rotações do poder à expectativa internacional.


As novas eleições para o segundo turno vieram como solução, in extremis, para o risco objetivo de partição do país, numa inesperada guerra civil, Yanukovich, derrotado agora, repete, ao reverso, o clamor pela anulação do pleito, não obstante a contundência final dos resultados. A defesa de um modelo político à outrance, - como se viu - pode levar ao risco da desestabilização do país, mal saído do statu quo pós-soviético.


O desfecho, de toda forma, assenta-se sobre o balanço do mal menor, em que o escrúpulo do rito democrático confronta o peso, ainda excessivo, do velho aparelho sobre a auto-organização efetiva da sociedade, degelada, após a queda do Muro. De toda forma ainda, os resultados, quase que simultâneos, da eleição romena nestes dias, e por vantagem tão mínima quanto decisiva, abriram caminho para um primeiro escape aos conformismos do sistema, em torno de lideranças de um novo populismo, assentado, exclusivamente, na pregação moralista, acima de qualquer suspeita.


O essencial entretanto, na possível mudança européia em 2005, nasce do lance turco. Na grande carta estratégica, aí está o avanço desta nova cunha no jogo dos equilíbrios globais. Ancara nos apresenta a chance do Islão na modernidade, em possível contraponto à leva fundamentalista em que se definiu a explicitação potencial do antagonismo levantado pela cruzada bushiana de após o 11 de setembro - fundador da modernidade do antigo Império Otomano. A lembrança de Ataturk é a da guarda de uma prospectiva internacional, que venceria o integrismo das matrizes culturais corâmicas, liberando o avanço de uma concepção universal dos direitos humanos e do laicismo de estado. Mais ainda, é por essa Turquia, que ganha alento num novo jogo de blocos internacionais, o peso das antigas repúblicas islâmico-soviéticas. Podem, num bloco eurasiano, e através do governo de Ancara, trazer uma nova modulação à facilidade com que a queda das torres suscitou o fantasma de uma guerra de religiões, pelo levante do Al-Qaeda.


A Turquia pende hoje, de toda sua força, nessa viabilidade de um acréscimo de 100 milhões de habitantes ao mercado preferencial de Bruxelas e, inclusive, como contraponto ao expansionismo oriental de Washington, que é o da presença no mundo eslavo, e do aprofundamento da entente com Moscou.


A União Européia sabe do preço e dos trunfos de Ancara neste novo balanço planetário. Prevê-se uma agenda, ainda, de performances a cumprir, dos estatutos de liberdade aos do bem-estar dessas populações. Mas a barganha de entrada parece pronta, enquanto foi oferecido à Turquia o exorcismo fácil. Faz-se vista grossa sobre o problema curdo contra a concessão, quase sem dor, da republiqueta ao norte de Chipre, que só tem o reconhecimento internacional de Ancara.


As decisões de 17 de dezembro último, marcando os passos finais da entrada turca no sodalício de Bruxelas já deixam claro que, ao Velho Mundo, mantido no seu contorno geográfico exato, preferir-se-á um foco macrocontinental da Europa-Bizâncio, chegando ao Oriente Médio e crescendo no seu protagonismo, para vencer os alinhamentos fundamentalistas e a "civilização do medo".


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 31/12/2004

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 31/12/2004