Semana passada, Lula desceu de jeans do avião para abraçar Chávez na pompa de uma visita a Caracas. Pôs a nu o perigo do populismo que o venezuelano trouxe à reivindicação pela nova esquerda latino-americana no fechamento do Fórum de Porto Alegre.
Assistimos, na capital gaúcha, ao seu discu rso-maratona, todos os ademanes retóricos de Fidel, o carrossel das mãos, o dedo em lança no nariz. Na festa de todos os excessos que permitia o clímax do estádio repleto, gesticulava Chávez, camisa sobre camisa vermelho-unitom, estreando entre nós a arenga cívico-chula, o palavrão da genitália masculina, no trissílabo sonoro para pulverizar a Alca.
Na fala de hora e meia, semeou a vontade de uma liderança substitutiva de Lula. A consagração veio, após as vaias aos nossos ministros. Depois Chávez se transformou em patrono condoído do nosso presidente, dizendo entender as dificuldades da largada no Planalto, e garantindo que Lula ainda tem ficha limpa.
Chávez inundou-nos com a retórica do Sul, virgem de todos os impérios, até hoje, salvo a nossa exceção no século XIX. Mesmo que o segundo reinado tenha assentado nossas primeiras elites civis, em contraste com as dragonas de líderes da América Espanhola da época.
O cenário da arquiesperada revolução foi trombeteado com o mesmo bordão de apelo à liberdade, de seu colega de Washington, dias antes. O chamado ao velho Terceiro Mundo retorna à convocação de Bandung, evocada meio século após o começo da resistência das nações, excluídas da prosperidade do Norte. Mas a chamada esbarra na advertência de Lenin, de que falar em revolução sem dizer-se como fazê-lo congela a utopia e leva ao desenfreio do radicalismo para todos os gostos.
Como vai o Fórum, suas teses e seus recados a Caracas? O presidente venezuelano e futuro anfitrião não foge à resposta, soltando-a de toda engrenagem realmente histórica, da verdadeira mudança. O que receita simplesmente é que “transcendamos” o capitalismo, em salto místico-acrobático do voluntarismo desabrido. Despedimo-nos de toda dialética.
As pegadas da História são as da humildade do possível, que Lula tem a responsabilidade de trilhar, pé ante pé, num cabo-de-guerra para alterar a relação de forças no jogo dos pesos globais de nosso tempo. De instante a instante, sofrendo do primeiro desengano da pureza ofendida revolucionária, ou dos arreganhos dos filhos do PT, mas não precisando do perdão lustral do venezuelano.
Mesmo porque Chávez ao nos dar conta da incontestável importância da sua luta arrola, como conteúdo da revolução bolivariana, o acesso popular, o ganho aos serviços públicos, à educação ou à saúde, ao controle estatal de seu petróleo, que compõem o mesmo ativo do nosso cheque-família, do sucesso da Petrobras ou da nova e determinada abertura dos excluídos à universidade brasileira.
O passo à frente, nesta perspectiva, talvez se tenha tornado mais explícito em Davos do que em Porto Alegre, no forçamento por Lula do debate sobre as conquistas na OMC, do desmonte dos subsídios agrícolas, dos novos e penosos confrontos com a Alca, não obstante o praguejar de Caracas, que mal começam na euforia bushiana, e prenunciados no aperto de mão quebra-ossos de Zoelik em Celso Amorim.
Por uma vez, Chávez, à guisa da missão que impõe ao Sul, falou no socialismo, em contraponto ao apelo à revolução. Uma verdadeira esquerda passa por um anticlímax, como sabe Lula e o reconheceu em Porto Alegre. A genuína ação revolucionária despede os nirvanas da radicalidade. E vai à busca dura dos consensos mínimos que ressalta a palavra-chave, de Saramago em Porto Alegre, a permitir às verdadeiras frentes de mudança. Sem utopias de consolo, nem choro sobre o fato consumado das dominações.
A hegemonia anda depressa demais para nos darmos conta do que seja o mundo da nossa diferença, da caução que temos de futuro, e que passa por Lula.
O Globo (Rio de Janeiro) 28/02/2005