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Saudade sinistra

 

Em "Considerações sobre a Nostalgia", Joaquim Manuel de Macedo, de "A Moreninha", mistura ficção e medicina de modo surpreendente


Medicina baseada em evidência: essa é a expressão-chave na pesquisa médica atual. O conhecimento já não depende de autoridade; depende de demonstração e, principalmente, demonstração numérica: como disse o cientista lorde Kelvin, tudo o que é verdadeiro pode ser expresso em cifras.


Assim, se queremos comparar dois medicamentos ou dois procedimentos cirúrgicos, dividimos os pacientes em grupos e observamos os resultados. Testes estatísticos nos ajudam a decidir.


Se a tese "Considerações sobre a Nostalgia" fosse avaliada à luz desse conceito, o autor estaria inevitavelmente reprovado. Mas a tese, apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, data de 161 anos: a profissão médica era então coisa inteiramente diferente. Portanto, pode-se até aceitar que tenha sido aprovada, mas a questão se impõe: por que publicá-la agora, como acaba de fazê-lo a editora da Unicamp?


Existem muitas razões para fazê-lo, a começar pelo autor, ninguém menos do que Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), que, no mesmo ano de 1844, lançava, e com tremendo sucesso, o romance "A Moreninha". Quem conhece Macedo como romancista e como jornalista, professor, poeta, teatrólogo e memorialista, talvez se surpreenda ao saber que ele também era médico (verdade que exerceu a profissão por muito pouco tempo).


Cientificamente falando, "Considerações sobre a Nostalgia" não é o bicho. O mesmo se pode dizer acerca do aspecto literário da obra. O que temos aqui é um texto que, misericordiosamente curto, é contudo pomposo, rebuscado; nada que se compare à sobriedade dos atuais artigos científicos e nada que se aproxime do estilo ficcional de hoje. Sob esses dois aspectos, contudo, Macedo reflete o espírito do seu tempo.


Opiniões, não fatos


No caso das teses médicas, temas vagos eram moda. Diz a advertência no início do trabalho: "A Faculdade não aprova nem reprova as opiniões contidas nas teses, as quais devem ser consideradas próprias de seus autores". Ou seja, tratava-se de opiniões, não de fatos. E o assunto, nostalgia, prestava-se a opiniões, mesmo porque se situa na fronteira entre literatura e medicina.


De modo que, depois de homenagear longamente o pai, a mãe, os irmãos, o primo, os amigos, os professores e depois de admitir que a tarefa proposta era alvo elevado demais para "vôo de asas ainda implumes", Macedo entra no tema, e nós o acompanhamos, felizmente bem guiados. Os dois organizadores deste volume, a historiadora Myriam Bahia Lopes e o historiador, tradutor e poeta Ronald Polito fizeram um excelente trabalho, completando o texto com notas esclarecedoras e, sobretudo, acrescentando um posfácio que, por si só, justificaria a publicação.


"Antes que a enregelada mão da morte venha fazer parar a pêndula da vida, mil vezes o tufão do infortúnio vem perturbar a regularidade de suas oscilações", diz Macedo. No "tufão do infortúnio" ele inclui a nostalgia, essa saudade do lugar de que se é originário. Começa, como é hábito em trabalhos desse tipo, fazendo um breve histórico do tema, começando com Hipócrates e chegando ao autor que, em seu tempo, dominava o cenário psiquiátrico, Jean Étienne Domininque Esquirol (1772-1840), discípulo de Pinel e um dos precursores da psiquiatria moderna; a ele devemos uma das primeiras classificações de doenças mentais.


Aliás, a influência francesa era dominante na medicina de então; das 37 citações bibliográficas do trabalho, 31 são de livros franceses, e não há nem uma sequer de obra norte-americana, o que hoje seria surpreendente. Macedo descreve-nos os sintomas da nostalgia, fala-nos de suas causas e até menciona supostos achados em cadáveres de nostálgicos. Para ele, a nostalgia é uma variedade da lipemania, termo que Esquirol usava como sinônimo aproximado de melancolia; mas, enquanto Pinel situa a causa do distúrbio na região do estômago e dos intestinos, Macedo, localiza-a, mais de acordo com os conhecimentos atuais, no cérebro. O certo é que nostalgia, palavra que vem do grego ("nostos", regresso, "algos", dor), era uma situação muito estudada em muitos manuais médicos de então.


De outra parte, e aqui entra o Macedo escritor, tanto melancolia como nostalgia eram temas de forte apelo para os românticos. Existem razões históricas para tal.


Em primeiro lugar, a modernidade nasce melancólica; a melancolia era uma reação de espíritos superiores, intelectuais e artistas, diante de uma época caracterizada pelo progresso científico, pelos descobrimentos, pela soberba produção artística, mas também pela ânsia de lucro e de prazer, pela especulação financeira e pela luxúria. Quanto à nostalgia, ela não era, para os brasileiros de então, um estado de espírito desconhecido (como não o era, para os portugueses, a saudade, palavra que, segundo o rei dom Duarte, só existiria no idioma luso).


Resguardar interesses


Como resultado das lutas políticas que cercaram o processo de independência, vários líderes tiveram de se exilar, entre eles, José Bonifácio de Andrada e Silva e José da Natividade Saldanha, autor de "Poemas Oferecidos aos Amantes do Brasil". O grande poema da época foi "A Canção do Exílio", de Gonçalves Dias que, embora não exatamente exilado, à época vivia em Portugal.


Mas Macedo não estava só interessado na nostalgia da elite. Interessava-lhe também a saudade que os escravos negros, principalmente os do campo, sentem da África. E aí surge um posicionamento imprevisto: a nostalgia poderia ser um perigo, a "fatal inimiga da agricultura do Brasil", diminuindo a produtividade da mão-de-obra. Dizem os organizadores que, "longe de qualquer projeto humanitarista (...), o que Macedo tem em mira é resguardar os interesses" dos proprietários de escravos.


De qualquer maneira, o escritor condenava a escravidão por ter provocado a degradação moral e física dos africanos. Uma visão tipo "crime não compensa" e que levaria, décadas depois, à substituição dos escravos pelos emigrantes europeus.


Finalmente, deve-se assinalar que a tese de Macedo coincide com a construção do primeiro hospício do país. Iniciava-se a era do alienismo, que Machado viria a satirizar em "O Alienista". Tanto do ponto de vista médico, como literário e político, Joaquim Manoel de Macedo reflete bem a sua época. O que confere um atrativo especial à leitura de sua tese. É um exercício de nostalgia, mas é um mergulho, rápido mas surpreendente, na história de nosso país.


 


Folha de São Paulo / Revista Mais! (São Paulo) 09/01/2005

Folha de São Paulo / Revista Mais! (São Paulo), 09/01/2005