Um dos maiores romancistas vivos do Brasil permanece desconhecido em Mato Grosso, com pelo menos seis romances inéditos guardados na gaveta. É o caso de Ricardo Guilherme Dicke. No fim do século passado (em 1999, exatamente), teve Dicke publicado, em Cuiabá, seu romance "O salário dos poetas", ríspida cavalgada em que tudo acontece, inclusive a bala de prata que mata os déspotas, com um dos personagens sendo coveiro e proclamando que nada existe além da "morte, morte, morte, simplesmente morte, será que existe algo mais?".
Ao longo de suas quase 500 páginas, tudo se junta naquela parte geográfica do mundo, com hippies chegando em ondas para a Noite da Predestinação, a noite do eclipse em que os ciganos festejam o futuro.
Lembro-me do passado, quando Ricardo Guilherme Dicke morou no Rio de Janeiro e aqui foi descoberto. Dirigia eu então uma seção diária de literatura e nela instituí o grande Prêmio Nacional Walmap destinado a romances. Já lá se vão muitos anos (foi em 1968), quando convidei Guimarães Rosa e Jorge Amado para comporem, comigo, a comissão julgadora do Walmap. Candidatavam-se ao prêmio perto de 300 romances.
Cada um dos três, depois de uma leitura inicial, faria sua lista dos que poderiam ser premiados. Dicke se apresentara ao concurso com dois romances: "Deus de Caim" e "Décima segunda missa".
Dentro do aferimento geral do concurso não poderíamos premiar dois originais do mesmo autor: escolhemos "Deus de Caim", que foi lançado então em livro que se destacou na ficção daquele ano. Que ele não era um escritor bem comportado, logo se viu, já que não se submetia a um estilo que estivesse em moda no momento.
Ao contrário, fazia o que lhe dava na cabeça, ou nos dedos, que sua linguagem parece ter sido criada e desenvolvida pelos dedos. As descrições surgem nele em haustos, como se o narrador tivesse pressa em chegar a um determinado fim, e sentisse que os dedos lhe doíam no esforço de trabalhar as palavras. Esse caráter digital de seu manuseio descritivo é de absoluta liberdade.
Suas armas de ficcionista não são apenas as de espontaneidade e as do absurdo, mas também as de uma tradição cultural que ele mistura e manda, numa aceitação, sim, do que o antecedeu, contudo uma aceitação que também subverte o que aceita e tenta lançar uma aparente desordem no que até ele chegara ordenado.
A tradição é bíblica e clássica, e tanto Abel como Caim e Lázaro ingressam no mundo escuro que Ricardo Dicke levanta. Caim mata, Abel morre, Lázaro ressuscita, cada um sendo um símbolo e também mais do que isto por serem criações materiais, diretas, independentes do tecido, às vezes, frágil do símbolo. Além disto, Bach, Beethoven, Vivaldi, Nietzche, escritores, figuras do ambiente que cerca a narrativa, todos participam da subversão literária de sues romances.
Lidando com toda uma simbologia, a que ele dá um sopro vital fora do comum, Dicke não deixa coisa alguma de fora. Seu enredo é de vida primitiva, com personagens que, revelando uma existencialidade mato-grossense, estão no ar, soltos e livres, não comprometidos com uma possivelmente falsa mato-grossidade, humana e literariamente disponível.
O narrador de "Deus de Caim" e "Salário dos poetas" atinge esse plano porque nele o meio se impõe, a linguagem determina tudo, é no domínio manual da língua que ele faz repousar a força do que tem a dizer. Às vezes segue um sistema simples e claro de encaminhar a história - com substantivo, ponto; ou substantivo, particípio-passado, ponto; ou substantivo, gerúndio, substantivo outra vez, ponto. Tudo direto e claro. Claro e forte. Como: "Na rede, Lázaro." Ou "O irmão na rede, morto". Ou "O mundo rodando sua roda".
O importante, no romancista Dicke, é a linguagem. Pura. Prende-se nela. Veja-se que tudo é linguagem e, no caso, linguagem baseada na palavra. A melhor das histórias, se não tiver encontrado a sua linguagem, dará em nada. Em Dicke, a linguagem não se perde. Ela é o sexo e a morte que o autor deseja mostrar e cujo espírito o leva a escrever. Mas não é o espírito que torna sua obra uma novidade em literatura.
É a sua linguagem, é a maneira como se apossa ao mesmo tempo de realidades e das palavras para construir um romance. Em certas partes do livro, usa a "linguagem do ódio", mas ligada ao amor, não o romântico, o do puro sentimento, mas o erótico, o da loucura de Eros que, felizmente, o mais civilizado dos homens e a mais civilizada mulher, membros da mais civilizadamente industrial das sociedades, ainda são capazes de ter.
Como seus personagens se misturam sem causar confusão no escorrer da história, os ângulos da narrativa também mudam (da terceira pessoa para a primeira e vice-versa), o que, ao contrário do que se poderia esperar aumenta a comunicabilidade imediata de cada incidente da narrativa.
"O salário dos poetas", de Ricardo Guilherme Dicke, foi lançado pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenação editorial de Lorenzo Falcão, diagramação de Gisele Elaine de Oliveira, design da capa de Rodrigo Agnolon, com desenho do próprio Ricardo Guilherme Dicke, revisão de Sueli Ferraz Alonso.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 11/01/2005