O começo da diferença do presente governo põe em causa a oportunidade da discussão das ações afirmativas. Remetem a uma condição típica da contemporaneidade quando o peso dos aparelhos coletivos e seus controles via de regra coíbem a expansão de novos avanços sociais. À inércia do já conquistado opõe-se à consagração de exigências subseqüentes de um fruir coletivo a que responde, basicamente, a idéia da realização universal da democracia.
O que estaria em causa pois é a crise da visão tradicional da representação, pela qual um imaginário coletivo suporia sempre a flexibilidade desse duto, ou a ajustagem inevitável à pulsão de novas demandas de mudança. Um sentimento de maior justiça se deslocaria do liminar da sociedade à superestrutura das suas organizações de poder e da moção da máquina pública. A dita ação afirmativa porta a cunha da ruptura, em que a pressão social desborda um statu quo de melhoria coletiva, definida sempre em melhor repartição dos direitos humanos, individuais ou sociais, e novo grau de realização concreta de um estado generalizado de bem-estar.
A cultura petista não supõe apenas a presunção explícita de que as instituições assegurariam esta promoção continuada do todo social, mas a sua aceleração pelo avanço de uma consciência cívica. Ou seja, de uma crescente mobilização, que dá por assente o reconhecimento social da injustiça das normas existentes e força sem rodeios a sua mudança. O contraponto natural da ação afirmativa é a volta às raízes da própria noção de democracia, tal como se reemergisse o foro das praças (ou das "ágoras") da velha matriz grego para tornar contundentes as reformas do sistema. Corrige-se, por aí, o risco de que, pela própria complexidade do Estado moderno, a representação se reifique e se aparte do impulso da melhoria social, devolvido à permanente "tomada de consciência" e seu esporão de reformas.
A ação afirmativa quer retornar ao ponto nodal, ou ao umbigo de toda democracia, recortada na sua manifestação direta; do povo reunido, inescamoteável a ação das maiorias, aberta nos espaços públicos às tensões sem resto, em que se materializaria, contundentemente, este bem comum em ação.
Trata-se, pois, sempre, na "ação afirmativa", de um confronto, ou de um forçamento contra a norma vista como iníqua, e que se fada à ab-rogação pela repetição continuada de sua infringência. A cidade moderna materializa pelos comícios ou pelas marchas como um aríete gigantesco para derrubar uma arquitetura enfermiça do status quo. As marchas são o veículo ostensivo e demolidor das normas injustas. Mas o confronto pode passar às ações de interferência no espaço público, criando desconfortos sociais a tempo e a hora, passando da manifestação ao protesto. Aos dos sit ins, na ocupação indefinida das salas de aula, à invasão de áreas burocráticas de trabalho, ou à desestabilização do transporte no tecido urbano.
No âmbito internacional, a ação afirmativa ganhou a dimensão esmagadora nas marchas para condenar a iminente invasão do Iraque em 2003. Foi a resposta única do 13 de fevereiro daquele ano, permitindo em todas as megalópoles do Ocidente o ajuntamento dos quase 2 milhões de londrinos; do milhão de madrilenos; de barcelonenses; de parisienses ou dos 2 milhões de romanos contra a ocupação de Bagdá. Perguntar-se-ia, entretanto, teria sido esta a última manifestação de tal teor, no quadro em que a tendência à virtualização mediática nos expropriaria do mundo físico, e das epidermes suadas, no mão a mão, ou no braço a braço dos espaços públicos e, pois, da derradeira coreografia viva do protesto social?
Até onde o mundo da internet está corroendo a manif européia, em sutilíssima presdigitação interior, trocando pelo assentimento à distância, o laço de identidades do protesto? Passaríamos à interação instantânea e monumental dos sites e contra-sites, em transposição eletrônica do espetáculo da praça ou da rua congestionadas. Ou enfrentamos, de vez, na ida ao meio cool, um esfriamento sem volta, nem impacto do que só vinga se supõe a interação efetiva, da hora, sem volta, na praça?
Voltaremos, dois anos após, a um protesto realmente universal contra a continuação do impasse no Oriente Médio? As condições objetivas de mobilização vêm de se reafirmar, com os três minutos de silêncio europeu, em homenagem às vítimas do maremoto. Mas no sentimento de protesto uma contabilidade remota pela interação das telas, não faz às vezes do povo na praça. No quadro do futuro imediato esta expressão máxima da ação afirmativa vai depender cada vez mais do universo mediático. Não por fugir à cobertura ao acontecimento internacional, mas por não de lograr exprimir na contabilidade eletrônica o que só conta, até hoje, pela visibilidade direta do dissenso. A lei do menor esforço pode contagiar até o protesto e a sociedade virtual se encarregar da boa consciência do confrontar, mas ficando em casa.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 14/01/2005