Nessa espécie de grande pátio que une o delicado Petit Trianon, onde nos encontramos neste momento, e o maciço bloco de concreto do Centro Cultural da Academia, o qual já tem o nome de Austregésilo de Athayde, sopra sempre um vento forte. É o vento da entrada da barra, da entrada, pelo mar, no velho Rio de Janeiro. Este vento fustigava, até 1922, data de seu desmonte, o Morro do Castelo, que ficava bem atrás de nós e atrás da igrejinha de Santa Luzia, que ainda está ali, olhando o mar.
Pois bem, anos antes de ser demolido, o Morro do Castelo abrigava, entre outras casas humildes, a de uma adivinha, de nome Bárbara, conhecida como “cabocla”. O Rio, o Brasil, como se sabe, apesar de católico desde a primeira missa que aqui se rezou no ano de 1500, sempre manteve um culto lateral, meio disfarçado, a divindades e poderes menos ortodoxos. Tanto assim que o mais profundo conhecedor que já houve do nosso povo – e dizendo isto fica claro que me refiro ao nosso Fundador, Acadêmico Machado de Assis – põe na primeira página do seu penúltimo romance, Esaú e Jacob, duas finas senhoras da sociedade carioca, Natividade e sua irmã Perpétua, subindo o Morro do Castelo para consultar a cabocla. É claro que o assunto era sério, pois do contrário Natividade não deixaria o luxo e a calma de sua casa de Botafogo para escalar aquele morro, que podia ter tido muita importância histórica, mas se transformara em valhacouto de desocupados. O assunto era simplesmente que Natividade tinha tido gêmeos e queria descobrir, mediante a clarividência da cabocla, que destino viriam a ter. Qual seria o destino reservado a Pedro e Paulo? E Natividade, ao chegar, entregou à cabocla aquilo que a consulta exigia: retratos dos dois gêmeos, madeixas do cabelo de cada um.
Na cena da adivinhação, Machado não nos deixa saber como era seu costume, até que ponto ele criou com Bárbara uma pitonisa rústica, mas de certa profundeza, ou sinceridade, ou se apenas a apresenta tal como vista por Natividade, que se acha que Bárbara possui dons sobrenaturais poderá até, quem sabe, esperar que ela tenha prestígio para criar um bom futuro para os meninos. O fato é que vemos Bárbara fumar, mirar firme os retratos, apertar os cachos de cabelos, respirar fundo e finalmente fazer a pergunta que inquieta natividade: Pedro e Paulo teriam brigado antes de nascer, ainda no ventre dela? Tinham, responde Natividade, lembrando pontadas, dores, insônia. Mas que queria isto dizer? E, vendo a cabocla meio agitada, transtornada, implora: “Diga. Posso ouvir tudo.” Mas Bárbara, já livre do transe em que estivera mergulhada, sorri, feliz, anunciando “cousas futuras!”. Natividade insiste, quer ouvir mais, quer saber se os meninos serão felizes, e a vidente diz que sim, que vão não apenas crescer, vão ser grandes e, sobretudo, hão “de subir, subir, subir... Brigam no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!”.
O crítico, poeta e acadêmico Augusto Meyer, em um de seus pioneiros estudos sobre Machado de Assis, chamou-o de o Bruxo do Cosme Velho. Isto não me autoriza a afirmar que Machado previu, no capítulo inicial de Esaú e Jacó, a derrubada do Morro do Castelo, a construção pelos franceses deste Petit Trianon, a vinda para cá da Academia, a ampliação da Academia, por Austregésilo de Athayde, Centro Cultural afora. Mas peço vênia para lembrar que houve, em tudo isso, a intervenção de outro bruxo, também morador do Cosme Velho, o dito Austregésilo de Athayde. Aos críticos difíceis, que disserem que há coincidências demais, muito forçadas, no enredo deste meu romance, peço que reparem que o Petit Trianon e o Centro Cultural são gêmeos tão diferentes do ponto de vista do temperamento e que no entanto cresceram para coisas grandes, ficaram gloriosos, cintilantes de fardões e povoados de senhoras elegantes, em noites de posse de acadêmico.
Pedro e Paulo, na verdade, ficaram gloriosos, sobretudo, como criações de Machado de Assis. Criação dele é também esta sólida Academia, que hoje generosamente me recebe e que foi fundada em 1897. É pouco mais jovem que a República do Brasil. Não tem sofrido, porém, os abalos e aflições da República, que apesar de haver passado por tantas revoluções não conseguiu chegar à nossa estabilidade acadêmica. Durante a minha vida, que de um ponto de vista histórico não é afinal de contas tão antiga assim, já atravessei várias repúblicas. Nasci – o que, para parodiar Rubem Braga, foi uma precipitação – em 1917. Eram ainda os tempos da Primeira República, a qual foi derrubada quando eu era menino, em 1930, e passou a ser conhecida como República Velha, também chamada República dos Carcomidos. Vivi, a partir de então, alguns anos numa República dos Tenentes, que em 1937 desembocou na entidade denominada Estado Novo. Estive anos fora, em Londres e Paris, transmitindo notícias do mundo para o Brasil, e quando retornei, em 1947, havíamos entrado em um período que se classificou como Democracia, e que se prolongou até 1964, quando entramos no chamado Regime Militar, que o vulgo denominou Ditadura. Deu lugar à República em que agora vivemos e que ainda carece de nome de pia, confirmado.
Enquanto isso, a Academia crescia tranquila. E, como descobri numa quinta-feira recente, depois do chá e durante a reunião de rotina, esta sólida Instituição, preocupada com seu destino e com a guarda da Língua e da Cultura do País, nem sabe ainda que nome é o seu. Na reunião de outro dia, como neófito e catecúmeno, já eleito mas sem direito a palpite ou muito menos voto, vi e ouvi, com agradável assombro, que até hoje a Academia não sabe se se chama Academia Brasileira, simplesmente, ou Academia Brasileira de Letras. E não parece de todo preocupada, tanto assim que, depois de se cruzarem opiniões e até ironias acerca do assunto, nada ficou resolvido, absolutamente nada. Ou, para ser mais exato, o último dos acadêmicos a se manifestar foi a Acadêmica Rachel de Queiroz, que sugeriu que devíamos continuar exatamente como até agora, usando, segundo a inclinação de cada um, o nome de Academia Brasileira ou de Academia Brasileira de Letras.
Até chegarmos a esse remanso, a esta nossa tranquila Academia à beira da Guanabara, o Brasil empreendeu várias outras experiências acadêmicas, a princípio na Bahia, sede do governo colonial. Como escreve José Veríssimo – acadêmico – em sua História da Literatura Brasileira,
... havia academias no Brasil ainda antes do século XVIII. [...] Mas como associações literárias e regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta época criada a primeira, a Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da metrópole [...], fundava-se conforme aquelas, com a proteção real, sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele em seu próprio palácio.
O historiador Rocha Pita, citado por Veríssimo, diz que era indispensável a fundação de uma academia como a dos Esquecidos, sobretudo na Bahia, que “na produção de engenhosos filhos, pode competir com Itália e Grécia”. Fundou-se ainda na Bahia a Academia dos Renascidos, em 1759. O Rio de Janeiro entrou cedo na competição. Mesmo antes de se mudar a capital para o Rio, em 1763, tivemos aqui, em 1736, a Academia dos Felizes e em 1752 a dos Seletos.
Eis aqui como José Veríssimo registra na História do Brasil esses primeiros vagidos acadêmicos:
[...] tiveram as academias literárias no Brasil um existência transitória e inglória. Mas não de todo inútil e sem efeito nessa Cultura e na Literatura que a devia representar. Apesar da origem oficial, e de serem um arremedo, havia porventura nelas um sentimento de emulação com a metrópole, e, portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de independência. Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento dos letrados coloniais na formação das academias portuguesas anteriores. O propósito que não só essa, mas a dos Renascidos e dos Felizes declaradamente tiveram, de estudar sob seus diversos aspectos o Brasil e sua História, traduz evidentemente um íntimo sentimento de apego à terra, com a intenção, ainda certamente pouco consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia caber aos seus letrados.
Essa observação de Veríssimo, sossegada mas profunda, me serve de atalho certeiro ao Patrono desta minha Cadeira, o poeta Cláudio Manuel da Costa, que se filiou em 1759 à Academia Brasílica dos Renascidos, segundo documento descoberto em 1911 nos arquivos portugueses. Reincidente, Cláudio fundaria mais tarde, em Minas, outra Academia, a Arcádia Romana, ou Ultramarina, que vai acabar na tragédia da Inconfidência Mineira. Ninguém terá retratado melhor que meu predecessor, Austregésilo de Athayde, a beatífica paz em que viviam os poetas da Vila Rica:
As inocentes paisagens bucólicas em que pastores imaginários, vestidos de peles, tangiam rebanhos ao som da rude frauta, as florestas povoadas de semideuses homéricos, as sutis aparições dos habitantes das árvores, dos ares e das águas, todo o mundo que sucumbira com a morte do Grande Pã, revivia nas montanhas mineiras. Vinham de tão longe, do fundo dos milênios, no ritmo dos alexandrinos de Glauceste Satúrnio e do amorável Dirceu.
Glauceste Satúrnio, esclareço, era o apelido de Cláudio; e Dirceu, naturalmente, o de Tomás Antônio Gonzaga, na referida Academia Romana, ou Ultramarina, que haviam fundado. É claro que não entraram os dois na Conjuração Mineira apenas por desfastio, e para descansar da Poesia. Eram sensíveis às ideias do tempo e aos anseios de independência. Aqui está de novo Austregésilo de Athayde:
Cláudio acompanhara a revolução americana, sabia que ao norte do continente um grande povo proclamara a independência. [...] Washington era citado como um semideus. Perpassava nessas conversas, a princípio, a tímida aragem da doutrina em forma de longínqua esperança. Durante o dia, o advogado e o juiz (isto é, Cláudio e Gonzaga), cumprindo os deveres dos seus encargos, ponderavam o sofrimento do povo, as enormidades do fisco, as ameaças da derrama anunciada, enquanto partiam as tropas copiosas conduzindo para o litoral, na lombada dos burros, o ouro roubado à terra. E tinham que pleitear a causa dos humildes e julgá-la segundo os rigores das Ordenações, no serviço leal de Sua Majestade.
Nesta sua última frase, Athayde realmente captou o dilema por excelência de Cláudio e Gonzaga, ambos conhecedores profundos e executores das leis de Portugal e ambos, ao mesmo tempo, já rendidos ao domínio da outra Lei, que raiava como um sol novo em folha no céu dos Estados Unidos e da França, encerrando o período do absolutismo monárquico. No entanto, mesmo assim, tinham o consolo da Poesia que praticavam. Refugiavam-se nela. E, ainda que Cláudio Manuel da Costa não tenha chegado à sustida e firme beleza dos versos de Gonzaga dedicados a Marília, ele nos deixou uma coleção, cheia de graça e frescor, de sonetos de molde camoniano. E atingiu um momento especialmente alto quando, ao tomar como tema uma história clássica e cheia de versões ilustres – de Ovídio passou a Metastasio e a um poema lindíssimo de Góngora –, deu-lhe, mesmo assim, um toque mágico, novo. Trata-se da lenda de Galateia, amada pelo belo pastor Ácis e perseguida pelo insano amor do ciclope Polifemo. Cláudio foi o único que se compadeceu do gigante, daquele ser monstruoso, mas tal como o viu Cláudio, monstruosamente apaixonado.
Antonio Candido celebrou assim esse momento luminoso da nossa Poesia no século XVIII:
[...] o contraste dramático entre o gigante grotesco e a ternura que o anima permitiu a Cláudio um poema comovente, quase trágico. O pobre ciclope apaixonado, largado a soluçar sua paixão desmesurada nas verdes relvas do prado arcádico, entre pastores e pastoras de ópera, produz o efeito de um estampido nessa atmosfera de “parnaso obsequioso” – graças à contensão clássica e à força barroca que o anima.
Antonio Candido tem razão, e o velho Cláudio, meu Patrono e Patrono de Austregésilo, às vezes nos faz pensar, ao falar pelo ciclope, em algum Vinicius de Moraes solto na roça e disposto a esvaziar de gado alguma fazenda da família para conquistar Galateia:
E se não basta o excesso
De amor para abrandar-te,
Quando rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo ofereço:
Este branco novilho,
Daquela parda ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta
Quem guarda amor, zelos apascenta.
Seja como for, o que parece indiscutível é que a poesia criada pelos árcades da Academia Ultramarina, e praticada com brilho por Gonzaga, Cláudio e por Inácio José de Alvarenga Peixoto, terá ocupado demais o tempo desses inconfidentes. Havia, certamente, planos de subversão. Mas antes de mais nada, por exemplo, escolheu-se o lema da bandeira revolucionária. O primeiro “Ordem e Progresso” que tivemos foi o verso virgiliano Libertas quae sera tamen. Ora, ao contrário do que ficou pensando a maioria do povo brasileiro, o verso nada tem de heroico, ou patriótico, no poema original. Vou pedir vênia para uma digressão, na qual citarei uma extraordinária façanha de tradução empreendida pelo grande poeta que foi Paul Valéry, acadêmico, Académie Française.
Um editor de livros de Arte pediu a Valéry, durante a guerra, que lhe traduzisse, para um belo volume ilustrado que planejava, as Bucólicas de Virgílio. Assustado, lembrando-se das aulas de Latim nos bancos escolares, Valéry fez ver ao editor que já havia excelentes versões do Virgílio inteiro em Francês. Mas o editor não queria mais um Virgílio traduzido por algum professor. Queria V. e V., Virgílio e Valéry. Queria, mais ainda, para chegar a uma beleza marmórea das páginas bilíngues, que verso a verso, linha a linha, os poemas se correspondessem. Queria mais ou menos que pastores latinos do ano 40 dialogassem num coro simétrico com pastores franceses de 1940. A proposta era tão atrevida e difícil, que Valéry aceitou.
Infelizmente não possuo a joia que é a edição de luxo que o editor Roudinesco publicou. Mas mesmo a brochura que a Gallimard imprimiu da obra – só os poemas, em Latim e Francês, um defronte do outro como num espelho – dá, além da leitura, um prazer visual extraordinário. O primeiro poema das Bucólicas é uma conversa entre Títiro e Melibeu, pastores que, na realidade, eram proprietários rurais, como Glauceste Satúrnio e Dirceu. Melibeu pergunta ao outro o que foi que lhe trouxe o sossego e contentamento que se veem em seu semblante, e ouve a resposta: Libertas quae sera tamen respexit inertem... que os versos de Valéry, que traduzo, vão ecoando em francês: “A liberdade, que, tardia, apesar da minha negligência me veio, dignando-se enfim interessar-se por mim.” E prossegue: “Deixado por Galateia, Amarílis já me havia tomado como amante.” Como vemos, com certo espanto, a liberdade que tardou, mas veio, foi a de ver-se o pastor livre do amor, provavelmente tirânico, de Galateia, caindo nos braços de Amarílis. Em seguida, ele vai a Roma, de onde volta ainda mais satisfeito para o convívio de suas ovelhas, à sombra das faias. Daí a felicidade que dele se irradia.
Não importa. Os árcades inconfidentes, quando elegeram seu lema, sua bandeira, não pretendiam contar os amores de ninguém. E sabiam, aliás, que o vocabulário do amor é um só e que no Cântico dos Cânticos, como nos versos de Santa Teresa ou de São João da Cruz, o leitor não sabe se está diante de amores do Céu ou da Terra. Os inconfidentes retiraram, dos amores de Títiro, o verso que, isolado, enaltecia aqueles que buscam a liberdade em si, a independência, pessoal ou da pátria: “Liberdade, ainda que tardia.”
E armaram sua conspiração, que sem dúvida teria resultado em prisões, em devassas, mas não teria consequências maiores, se não surgisse, entre os árcades, um complicador. Se não se manifestasse entre eles uma dessas presenças que perturbam, reviram, convulsionam a vida dos outros sem pedir licença. Surgiu, em suma, um herói, que não teve nome arcádico, que não possuía gado ou lavoura. Mas o Alferes Joaquim José da Silva Xavier nada tem a ver com o que exponho aqui. Ele não teria acesso a esta ou a qualquer outra academia. Não se elegeria em nenhuma delas, nem mesmo no quarto escrutínio de uma quarta tentativa. Era desses que primeiro ficam sozinhos, para viverem depois, para sempre, no dia a dia da vida de um povo.
Ainda assim, meu Patrono, Cláudio Manuel, teve seu modesto quinhão da tragédia. Morreu no cárcere. Suicidou-se, ao que tudo indica, como um belo e frágil pastor Ácis, aterrado com o ciclope Polifemo, que o perseguia.
Depois da Inconfidência, houve, aqui no Rio, algo que só poderíamos chamar pseudoconjuração, pois não havia conjurados. Havia, simplesmente, intelectuais reunidos numa academia chamada Sociedade Literária. Desconfiado, e pensando no que ocorrera em Minas, o vice-rei, Conde de Resende, meteu em horríveis masmorras da Ilha das Cobras os indiciados. Interrogados, maltratados, vilipendiados, lá ficaram durante três anos. Foram afinal mandados para casa, em 1797. A história guardou o nome de dois, o poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga e o Doutor Mariano José Pereira da Fonseca, que se tornaria mais tarde o Marquês de Maricá, autor de um livro de máximas. Maricá produziu um total de 4.188 máximas e reflexões. Depois dessa frustrante e última experiência, baixou o ritmo da criação de academias.
A nossa, um século depois, surgiu de uma nova mentalidade, com a vocação exclusiva de pôr-se a serviço da Cultura do País e à margem de qualquer tendência política do momento. Está dando tão certo, em sua perfeita estabilidade, que só corre o risco de um dia lhe pedirem que governe o País. Saberemos resistir.
Mas é tempo de nos voltarmos para aqueles que antes de mim ocuparam esta Cadeira, a de número 8, que parece ter uma certa preferência pelo Estado do Rio. O patrono era mineiro, mas os dois ocupantes seguintes – Alberto de Oliveira e Oliveira Viana – eram de Saquarema. Em seguida, ocupou-a meu predecessor, Austregésilo de Athayde, nascido em Pernambuco, educado no Ceará, irradiado depois, pelas rotativas e cadeias radiofônicas dos Diários Associados, e pelo seu próprio gênio de jornalista e homem público, pelo vasto território brasileiro. Agora, com este niteroiense, que sou eu, volta a Cadeira 8 à Velha Província, pois quem antecedeu Austregésilo foi o citado Oliveira Viana, que acreditava em um Brasil centralizado sobretudo no Rio e no Estado do Rio. Aliás, acho que, se vivo fosse em 1993, teria, no plebiscito, votado pela volta à Monarquia.
Alberto de Oliveira, poeta parnasiano, que em 1924 sucedeu ao Acadêmico Olavo Bilac como “príncipe dos poetas brasileiros”, nasceu, como dissemos, em Saquarema, Estado do Rio, de família de posses. Em Saquarema, viveu o período de infância. De lá, saiu aos 12 anos, quando veio para o Rio e não retornou nunca ao lugar de nascença, nem para aquela clássica “Visita à casa paterna” de outro poeta, Luís Guimarães, acadêmico. O próprio Alberto de Oliveira nunca se referiu ao assunto. Quis talvez, como poeta antirromântico que foi, furtar-se exatamente a uma emoção mais intensa e comum. De qualquer forma, é um fato curioso, pois nada indica que não guardasse da infância em Saquarema boas e doces recordações.
Austregésilo, aliás, numa feliz e significativa expressão, diz que tanto o poeta Alberto de Oliveira como o Sociólogo Oliveira Viana têm a psicologia do homo saquaremensis: foram ambos cultores da tradição do convívio familiar e ambos produtos de uma região linda e onde nasceram, como se diz, “bem”. Criaram obras importantes cercados de seus familiares. De Alberto de Oliveira, quase se poderia dizer que exagerou, pois viveu em meio ao carinho de nada menos que dezessete irmãos, dez dos quais homens e também poetas. O próprio Oliveira Viana, quando evocou o conterrâneo a quem sucedia nesta Academia, falou na “tribo patriarcal” que Alberto chefiava.
Nascido em 1857, Alberto de Oliveira participou do próprio movimento de criação desta Academia. No seu primeiro livro já parnasiano de poesia, intitulado Meridionais, teve prefácio de Machado de Assis. Publicou depois Versos e Rimas, 1895, e, a partir de 1900, publicou coletâneas de Poesias pela livraria Garnier. O poeta faleceu em 1937 e, hoje em dia, terá poucos leitores, além dos estudiosos da Poesia Brasileira. Mas, em qualquer revisão maior que se faça da Poesia Brasileira, aparecerá o nome do primeiro ocupante desta Cadeira 8.
Em Apresentação da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira dedica algumas páginas, no capítulo dos parnasianos, a Alberto de Oliveira e diz:
Alberto de Oliveira foi dos mestres parnasianos o que mais se deixou prender aos rigores da escola, o que mais se distingue pelo conceito estrutural da forma, muitas vezes prejudicado pelo abuso da inversão e do enjambement. [...] Com o passar dos anos, e talvez por efeito das críticas de seus melhores admiradores e amigos, como José Veríssimo, se foi o poeta despojando desses artifícios até atingir a beleza simples de Alma em Flor, onde o brilho descritivo se une à emoção do amor estudado num coração de adolescente. A natureza brasileira foi a fonte mais frequente da sua inspiração. As suas descrições são sempre brilhantes, e às vezes numa linha, num som, num perfume sabe evocar a totalidade do ambiente.
Chego agora ao outro saquaremense, Francisco José de Oliveira Viana, que desde 1920, quando publicou seu livro mais famoso, Populações Meridionais do Brasil, tem tido o dom de provocar debate e polêmica. Conservador, elitista, Oliveira Viana tem como virtude maior, a meu ver, a dura e pouco brasileira coragem de ser antipático, de remar contra a corrente. Comumente, entre nós, até membros de um governo ditatorial se declaram a favor da Democracia. Lutam para que ela venha um dia, dizem um dia: cousas futuras!
Oliveira Viana (que era, diga-se de passagem, um admirador do Conde de Gobineau) escrevia, ajuizando seu próprio livro:
Os povos civilizados em geral, principalmente os povos de origem colonial e de civilização transplante, como o nosso, possuem sempre duas constituições políticas: uma escrita, que não se pratica e que, por isso mesmo, não vale nada – outra, não escrita e viva, que é a que o povo pratica, adaptando-a ao seu espírito, à sua mentalidade, à sua estrutura – e as deturpando, as deformando ou, mesmo, as revogando – as instituições estabelecidas nas leis e nos códigos políticos.
Aqui fecho aspas e digo ao meu ilustre predecessor que, não estando vivo hoje, não pode saber o que ocorre neste País, que ele amou e estudou a fundo, que a Constituição, feita pelas elites políticas, continua não valendo nada, mas que o povo continua longe de adaptá-la, deturpá-la, revogá-la. As elites políticas, que sempre elaboraram a Constituição, agora marcam prazo de meros cinco anos para modificá-la em tudo que lhes parecer necessário. Descobriram, meu prezado antecessor, a Constituição descartável.
Mas às senhoras e senhores que ouvem não digo o mais novo, mas o mais recente dos acadêmicos, peço perdão pelo tom meio ácido. Austregésilo de Athayde, homem do Norte, homem consciente da importância de um País federativo e democrático, divergiu, em seu discurso de posse, das teses brilhantes mas um tanto prepotentes de Oliveira Viana: soube porém fazê-lo com uma classe, uma finura e uma sã honestidade que deviam servir de modelo a qualquer neófito num primeiro dia de aflição e fardão. Devo, aliás, acrescentar que, lendo e lendo discursos acadêmicos de posse, em busca de lenitivo e inspiração, notei em vários o germe da divergência, da cizânia, diante da opinião política ou do estilo literário de ocupantes anteriores da respectiva Cadeira. Fiquei mesmo tentado a citar alguns momentos dessa rebeldia de calouros contra mestres já afastados do Magistério. Mas me contive, apesar do indiscutível sabor e brilho de muitas dessas manifestações. Por que destacar, sublinhar, em nobres textos, divergências e implicâncias que lhes trazem sal mas que, extraídas deles, tornam-se ardidas, pungentes? Lembrei-me, inclusive, das observações e conselhos da vidente Bárbara, que, à medida que eu avançava neste discurso, me parecia cada vez mais clarividente: “Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!”
A qualidade da glória que cabe a Francisco José de Oliveira Viana ainda se discute entre nós e será por muito tempo discutida, pois ele foi culto, valente e franco. Sua trajetória pública, longa e destacada, começou a partir da Revolução de 1930. Consultor jurídico do Ministério do Trabalho, desenvolveu criadora atividade na formulação das leis de previdência social. Trabalhou na elaboração da Constituição de 1934 e durante o Estado Novo fez parte da comissão revisora de leis. Nessa carreira operosa e coerente, serviu ao País durante todo o primeiro período de Getúlio Dornelles Vargas, acadêmico. Era, ao falecer em 1951, ministro do Tribunal de Contas da União.
Chego, afinal, à tarefa mais grata ao meu coração, e talvez mais acima de minhas forças, que é a de falar sobre meu predecessor imediato, Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde, que, de tão recentemente falecido depois de vida tão fecunda e longa, ainda está quase que aqui, entre nós, na sua bem-amada Academia. Falo em tarefa acima de minhas forças não por algum floreio de retórica (pela primeira vez na vida estou lendo, aqui, hoje, o primeiro discurso formal que jamais redigi), mas por saber que estou cercado de pessoas que conheceram e conviveram muito mais que eu com Austregésilo e portanto muito mais capazes de evocar quem deles se afastou não faz ainda um ano, dia 13 de setembro de 1993.
O que não quer dizer que eu não haja conhecido meu predecessor ilustre, e isto durante decênios. Lembro-me – eu no Correio da Manhã e Austregésilo no Diário da Noite, nos Associados em geral, braço direito que ele foi de Chateaubriand – de um amplo, um ajantarado, na sua esplêndida casa do Cosme Velho. Foi talvez, quem sabe, dia 12 de julho, pois ano a ano, a 12 de julho, celebrava Austregésilo o aniversário do seu feliz casamento. Lembro que a casa estava repleta de amigos, mas a grande presença era a da família anfitriã: a mulher, D. Jujuca, que nunca vi que não estivesse irradiando felicidade, os olhos brejeiros e azuis, a pele de porcelana; os filhos adolescentes, a filha Laura, minha amiga, mulher do amigo Cícero Sandroni, escritores, que viriam a dar a Austregésilo netos artistas de que ele se gabava, com muita razão, onde estivesse; o filho Antonio e o filho Roberto, que tornaria Athayde o mais famoso nome de dramaturgo brasileiro no mundo inteiro.
Realizou-se esse almoço uns poucos anos antes de assumir Austregésilo a Presidência desta Academia, 1959, e durante toda a nossa vida nesta cidade nos encontramos e nos saudamos dezenas de vezes, em recepções, jantares, revoluções. Em anos mais recentes, surgiu em nossa relação um delicado e leve hiato, uma espécie de dúvida no ar. Consistia no seguinte: Austregésilo se orgulhava demais da Academia para admitir que alguém com alguma chance de nela se acolhido não o fizesse, não tentasse ao menos. Assim, se em alguém ele visse ou imaginasse ver méritos que justificassem aspiração acadêmica, ficava à espera. Só por timidez doentia – imagino que fosse seu raciocínio – deixaria alguém de aspirar à farda, chapéu, espada e colar. Depois de me haver feito, uma só vez, um vago aceno acadêmico, Austregésilo, cordial como sempre em nossos encontros, me espreitava também, um tanto desconfiado. Como um entomólogo diante de inseto que não se conforma exatamente com a classificação que lhe cabe.
Lamento hoje, neste dia em que vós outros acadêmicos generosamente me acolheis, que eu não tenha me apressado um pouco, para encontrá-lo aqui, respondendo afirmativamente àquele aceno.
Austregésilo nasceu em Caruaru, Pernambuco, em 1898. Mas foi em Fortaleza, no Seminário da Prainha, que armou as bases de uma sólida cultura humanística, forrada em Latim e no estudo dos Clássicos. Quase se fez padre. E, quando, ainda durante os estudos, perdeu a fé no Deus de sua infância, custou a se conformar com o vazio que lhe ficou. Acho importante lembrar esse ateísmo nostálgico, que ainda o entristecia de tempos em tempos, levando o atual Presidente desta Casa, Acadêmico Josué Montello, a lhe dizer, a título de consolação: “Você pode não crer em Deus, mas ele crê em você.” Acho importante evocar essa desconversão de juventude, para esclarecer a posição de Austregésilo quando integrava, em 1948, a delegação brasileira à assembleia das Nações Unidas encarregada de redigir a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao empreender sua famosa luta por incluir o nome de Deus no artigo primeiro da Declaração, Austregésilo não pensava no remoto Deus dos seus tempos de seminário. Pensava, segundo suas próprias palavras, em “todos aqueles que creem em Deus, no mais largo sentido do termo. [...] E esses constituem a esmagadora maioria da população de todos os países membros das Nações Unidas”. Irrespondível.
Só alguma futura biografia de Austregésilo de Athayde poderá, a um só tempo, traçar seu perfil, retratar-lhe a personalidade e daí partir para influência que teve essa personalidade na vida do Brasil do seu tempo. No entanto, mesmo então, mesmo levando em conta toda a abrangência da vida de Austregésilo, veremos que a concentração de sua energia criadora ocorreu aqui, nesta Academia Brasileira, ou Brasileira de Letras. Sem dúvida, o biógrafo se deterá longamente sobre livros que Austregésilo até certo ponto abandonou à própria sorte, como as Histórias Amargas, o romance Quando as Hortênsias Florescem, de 1921, e as coletâneas de artigos, em Vana Verba. O atual decano e ex-presidente desta Casa, Barbosa Lima Sobrinho, fez, ao morrer Austregésilo, uma terna contabilidade acerca do que teriam produzido ambos, em termos jornalísticos, desde que se encontraram, por volta de 1919, Barbosa no Jornal do Brasil e Austregésilo na United Press. Diz Barbosa Lima: “Se reunidos, meus artigos do Jornal do Brasil chegariam a mais de três milheiros; [...] Austregésilo, se fosse contar tudo o que produziu, chegaria a não sei quantos milheiros, quando ele reuniu em livro apenas algumas páginas de O Cruzeiro, naqueles volumes de Vana Verba.”
Só nos jornais, portanto, terá o futuro biógrafo toda uma mina a explorar. Acentue-se, todavia e sempre, que o verdadeiro ouro que Austregésilo extraiu de si mesmo, do seu esforço mais intenso e mais amoroso, é esse que herdamos nós, acadêmicos.
Esta Academia, fundada quando Austregésilo tinha um ano de idade, teve penosa infância e adolescência. Alguém perguntou naquele tempo ao poeta Olavo Bilac, acadêmico, Fundador, por que letrados errantes se arrogavam o epíteto de “imortais”. Explicou o poeta que não era por arrogância, não, e sim porque não tinham onde cair mortos.
Foi Afrânio Peixoto, Presidente desta Casa em 1923, que promoveu junto ao embaixador da França a doação à Academia do prédio em que estamos e que a França construíra para as celebrações do centenário da Independência do Brasil. Há uma lógica quase cartesiana no fato de a Academia, inspirada no modelo da Academia Francesa, herdar da França o prédio; e uma graça mozartiana no fato de a França nos haver doado, dentro do prédio, três jarrões de Sèvres.
A partir daí, e já morando em casa própria tão refinada, a Academia estava pronta para o furacão Austregésilo. Gilberto Amado, acadêmico, costumava dizer de Carlos Cavalcanti que ele era dotado, em relação aos amigos, de “um amor eficiente”. Parodiando Gilberto, eu diria que Austregésilo, no seu caso de amor com a Academia, foi eficiente e, se me permitem, até faunesco.
Desde sua investidura na Presidência, em 1959, começou a fazer com que a Academia, erguendo-se deste seu delicado foyer, virasse uma espécie de potência industrial. A partir de Juscelino Kubitschek e através dos governos militares, Austregésilo trouxe ao sonho ainda contemplativo da Academia uma realidade de concreto armado, vergalhões de ferro, blocos de mármore. Maurício Roberto foi o arquiteto convocado pelo nosso bruxo do Cosme Velho para harmonizar a ligação entre este salon das nossas reuniões, e onde guardamos as joias e relíquias do nosso orgulho familiar, e o imperioso prédio moderno em que se expandem nossas relações com o resto do Brasil e com o mundo. Esse prédio, Austregésilo o batizou Centro Cultural do Brasil, e o novo Presidente da Academia, Josué Montello, o crismou Centro Cultural Austregésilo de Athayde. Tivemos um bruxo fundador e um bruxo construtor.
Mas Austregésilo não se satisfaria com a redução da Academia Brasileira a um modelo exclusivamente urbano. Construiu também, na cidade de Campos, Estado do Rio, o Instituto Internacional de Cultura, conhecido como Solar da Baronesa. Por doação do ex-ministro da Agricultura João Cleofas, dono de canaviais em Campos, a Academia entrou na posse do Solar, antiga Usina Sapucaia. Lá, enquanto forma o Instituto Internacional de Cultura, fundou o Museu da Aristocracia Rural Fluminense do Século XIX. Afrânio Peixoto cobriu-nos com um teto, já que vivíamos no sereno. Austregésilo multiplicou esse teto pelos trinta andares do Centro Cultural e ainda descobriu, para nós, uma avó baronesa. Viva o amor eficiente.
Deixei para o fim o doce encargo de agradecer às senhoras e senhores acadêmicos a generosa acolhida que me deram e que muito me tocou. Pelo tempo que levei hesitante, temeroso do fardão, das novas responsabilidades, previ, ao resolver tentar a Academia, como se diz, luta mais árdua. Para surpresa minha, eu vos garanto, só tive um voto contra minha temeridade. Desde então, procuro, como um novo Diógenes, este único homem de juízo entre os tantos acadêmicos generosos demais. De algum lugar diante de mim, esse austero voto contra estará me olhando e dizendo aos seus botões – ou palmas de ouro, que botões não nos permitem – que eleição no Brasil acaba sempre assim. Aos demais acadêmicos, companheiros meus agora, meu comovido muito obrigado.
Minhas senhoras, meus senhores, está acabado o discurso.
12/7/1994