Em 1923, o governo francês doou à Academia Brasileira de Letras um prédio, réplica do Petit Trianon de Versailles, construído no ano anterior para abrigar o pavilhão da França na Exposição Internacional comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, no Rio de Janeiro.
Primeira sede própria da Academia, o prédio funciona até os dias de hoje como local para as reuniões regulares dos Acadêmicos e para as Sessões Solenes comemorativas e de posse de novos membros da ABL.
O PETIT TRIANON E SUA TEIA DE SIGNIFICADOS
Arno Wehling
(cadeira n. 37)
Em fins de outubro de 1922, com a cidade do Rio de Janeiro já mais tranquila após as agitadas comemorações do centenário da independência no mês anterior, ocorreu uma reunião na biblioteca da Câmara dos Deputados. O setor era dirigido por Mário de Alencar, um acadêmico, que costumava reunir ali amigos e discípulos para conversas literárias e políticas.
Nesse dia, Graça Aranha e Afrânio Peixoto, este presidente da ABL, formularam uma pergunta: “e se nós obtivéssemos o Palácio da França, na Exposição, para a Academia?”[1]
Passando da palavra à ação, pediram uma audiência ao embaixador da França, Alexandre Conty, que os recebeu no mesmo mês, na sede da rua Paissandu. Coube a Afrânio Peixoto redigir a solicitação, “entusiasticamente adotada” pelo diplomata, que de imediato encaminhou o pleito ao governo da França. A 25 de janeiro do ano seguinte o presidente Afrânio Peixoto comunicava ao plenário acadêmico a decisão do primeiro-ministro francês Raymond Poincaré e do presidente Alexandre Millerand de efetivar a doação para a Academia Brasileira de Letras.[^2]
O objeto e uma teia de significados
Tratava-se da doação de um prédio para determinada instituição cultural, mas esse ato não deve ser naturalizado: possui detrás de si uma densa teia de significados.
Todo objeto cultural traz em si, dizia Ortega y Gasset, uma dupla existência, a estrutura de qualidades reais que podemos perceber a olho nu e a estrutura de valores que desafiam nossa capacidade de avaliar.[3]
Podemos, ademais, descrevê-lo à Carlo Guinzburg numa perspectiva micro – o que significou para a instituição receber em doação um prédio apalacetado, num certo contexto de acontecimentos?
Numa perspectiva local: qual o significado para a então capital federal acrescer ao patrimônio da cidade um prédio destinado à sua academia nacional?
Numa perspectiva macro: que tessitura de relações políticas, culturais, econômicas e ideológicas amparava a ponta do iceberg, o prédio?
Nenhum desses ângulos é autossuficiente. Somente a combinação dos três pode nos aproximar melhor do significado ou significados do objeto: entrever as relações materiais e simbólicas que davam significado ao ato doador.
Do ponto de vista material havia aspectos concretos a considerar, como os políticos e os econômicos. Não se tratava apenas do valor financeiro do prédio para uma academia ainda franciscana, a despeito de outra recente doação, a do livreiro Francisco Alves, mas das relações entre dois Estados - França e Brasil - pertencentes à recém-criada Sociedade das Nações e da intensidade de seu comércio bilateral. Internamente ao Brasil, o prédio reiterava ainda a preeminência do Rio de Janeiro como capital federal e eixo da vida política do país. Já na ótica simbólica expressavam-se valores, por sua vez traduzidos em posições ideológicas, filosóficas, literárias, estéticas. Francofilia, positivismo remanescente, racionalismo iluminista, correntes literárias e discurso civilizatório mesclam-se nessa teia de significados que precisam ser desvelados para que se entenda por que um Estado doou a uma instituição de outro um pequeno palácio, o Petit Trianon.
Petit Trianon, o francês e o brasileiro
Sabe-se que o Petit Trianon francês, em Versalhes, teve sua origem remota num pavilhão mandado construir por Luís XIV onde se localizava uma aldeia, Trianon. Por sua elegância e fragilidade ficou conhecido como o “Trianon de Porcelana”, logo substituído por uma construção de mármore, o “Grande Trianon”. Muito mais tarde, já no final do reinado de Luís XV foi erguido novo prédio, denominado, por oposição ao anterior, “Petit Trianon”, oferecido pelo rei a Madame Pompadour e depois Madame Du Barry. Com Luís XVI coube à rainha Maria Antonieta ocupar esta que foi das primeiras edificações em estilo neoclássico da Europa.
Construção que, como o próprio palácio de Versalhes e seus outros “anexos” – Marly, o Grande Trianon, o Ermitage – foram, no clima que já se chamou de “francisação” da Europa[4], emulados em várias outras regiões. Somente o Petit Trianon teve seu “tema arquitetural” reproduzido em outras edificações como a “Casa del Labrador”, de Aranjuez, no palácio de verão dos príncipes Lazienski, na Polônia e no Rio de Janeiro do início do século XX.
O contexto dessa reprodução carioca é bem sabido: o palácio deveria representar a França na Exposição Internacional comemorativa do centenário da independência do Brasil.
Pode-se estranhar o fato de que duas repúblicas relativamente recentes, a III. República francesa e a brasileira, utilizarem com naturalidade uma simbologia tão fortemente associada não apenas ao Antigo Regime, mas a uma das etapas mais criticadas do absolutismo: afinal, tratava-se de um prédio construído às vésperas da Revolução Francesa, para uso de duas favoritas reais e uma rainha impopular.
Uma hipótese plausível para a representação francesa – já que não caberia ao Brasil interferir nas escolhas das nações convidadas – era a de que após a consolidação da República Francesa a partir de 1879 e as comemorações do centenário da Revolução, em 1889, as diferenças ideológicas estavam aplainadas e, portanto, podiam emergir as realizações francesas que tornaram o país no século XVIII o líder da “Europa das Luzes”. Objetos como o Petit Trianon foram dessa forma ressignificados sobretudo como monumentos arquitetônicos de determinados padrões estéticos, como o Neoclássico, desligando-se de suas origens políticas.
A reforçar a hipótese, o fato de que lideranças diretamente envolvidas na participação francesa e na doação, como Raymond Poincaré, presidente do Conselho e
Alexandre Millerand, presidente da República, embora de origens políticas diversas, caracterizavam-se àquela altura como “republicanos moderados”. O primeiro transitou da centro-esquerda para a centro-direita[5], enquanto o socialista Millerand rompeu com as lideranças radicais e fundou um Partido Socialista Independente, de conciliação entre a direita e a esquerda[6]. Ter-se-ia passado de uma leitura condenatória, jacobina e socialista do Antigo Regime, para outra, na qual realizações como os monumentos da monarquia passaram a ser percebidas como patrimônio comum do povo francês e não como retrato de um regime decadente.
A França era, assim, na exposição, abrigada numa edificação que, se lembrava o Antigo Regime, também representava o país em suas realizações culturais supra ideológicas. Só uma época de conciliação política e isolamento dos extremos poderia construir tal representação.
O estudo desse tipo de fenômeno é um dos mais ricos exercícios da análise histórica, pois considera as sucessivas representações sobre o passado procurando compreender seus significados, sem incidir em maniqueísmos fáceis e afastando o historiador de seu principal fantasma – o anacronismo.
O projeto do Petit Trianon brasileiro coube a dois arquitetos franceses, Émile Louis Viret e Gabriel-Pierre Jules Marmorat e a construção à empresa brasileira
de engenharia Monteiro Aranha, dos engenheiros Alberto Monteiro de Carvalho e Olavo Egídio de Sousa Aranha, concluindo-se no prazo de quatro meses.
A previsão do governo francês, conforme informado pelo chefe da delegação, Geo-Gérald na publicação oficial da exposição, era que o prédio seria “oferecido ao governo brasileiro e ficará sendo, por assim dizer, a Casa da França no Brasil.”[7] Por isso, pode-se acrescentar, não era uma construção efêmera, como quase todas as demais, mas visava um objetivo maior.
Foi com base nessa disposição que ocorreram as gestões de Afrânio Peixoto, Graça Aranha, Mário de Alencar e outros acadêmicos. Conquistado o apoio do embaixador Conty, procuraram também respaldo junto ao governo brasileiro, que afinal receberia a doação. Para isso contaram com o apoio do também acadêmico e ministro do Exterior Felix Pacheco, que declarou não achar “destino mais honroso, nem menos dispendioso para as finanças nacionais, do que essa dádiva à Academia”.[8]
O presidente Afrânio Peixoto comunicou em plenário no dia 25 de janeiro a perspectiva de doação, acrescentando que fora informado do assentimento do primeiro-ministro Poincaré e do presidente Millerand às gestões do embaixador Conty, que defendera pessoalmente o pleito em Paris. O fato foi devidamente registrado pelo “O Jornal” dois dias depois, destacando a “viva simpatia ao Brasil” que o ato representava.[9]
Na semana seguinte Afrânio Peixoto leu em sessão o telegrama de Poincaré sobre a oferta e, respondendo a uma indagação do acadêmico Lauro Müller, declarou um tanto imprecisamente que “a oferta francesa não foi solicitada, mantendo-se a Academia em atitude perfeitamente digna... o mimo foi espontânea e gentilmente feito pelo governo francês, por iniciativa do embaixador Alexandre Conty”.[10]
Já àquela altura havia a preocupação com a propriedade do terreno em que se encontrava o palácio e na mesma sessão o presidente anunciou gestões sobre o assunto com a presidência da República e a prefeitura municipal.[11]
Enquanto as tratativas com a França evoluíam muito bem,[12] ficando a entrega do prédio marcada para 12 de outubro, o mesmo não ocorria com a prefeitura. A 2 de junho Afrânio Peixoto oficiou ao presidente do conselho municipal pedindo formalmente a doação do terreno. Apesar de os vereadores terem concordado, o prefeito Alaor Prata vetou a concessão, invocando a lei orgânica municipal, que vedava doações e as más condições do erário municipal, lembrando que o terreno não valeria menos do que 500 contos de réis.[13] O Jornal do Brasil, aliás, antes do veto, já se havia insurgido contra o projeto, argumentando com a situação de carência da prefeitura.[14]
A Academia procurou o apoio do presidente Artur Bernardes. Embora o mandatário tivesse recebido a delegação da Casa, o tema permaneceu em aberto.
A despeito do impasse, Afrânio Peixoto pediu ao diretor de águas e obras públicas do município, em 4 de outubro, uma pena d’água para o prédio, na condição de seu proprietário.[15] Foi atendido e na sessão de 6 de dezembro anunciou que a próxima reunião seria a última a ocorrer no Silogeu. Nesta falaram, em manifestações emocionadas, como se descreve na ata, além do presidente, os acadêmicos Coelho Neto, Augusto de Lima e Rodrigo Otávio.[16]
A sessão de 15 de dezembro de 1923 foi a da inauguração da nova sede, à então avenida das Nações, presentes 26 acadêmicos sob a presidência de Afrânio Peixoto, que tinha na mesa diretora à direita o embaixador Alexandre Conty e à esquerda o ministro do Interior e também acadêmico João Luís Alves.[17] O Jornal do Brasil, O Jornal, O Paiz e o Jornal do Comércio dedicaram vasto noticiário ao assunto.
Na segunda sessão a se realizar no Petit Trianon, a 20 de dezembro, Afrânio Peixoto leu a carta que recebeu do embaixador Conty, historiando a gestão feita por ele e por Graça Aranha para a doação do prédio[18].
As providências cartoriais posteriores foram tomadas[19], de modo a legalizar a posse do prédio pela Academia. Restava a resolver, porém, o problema do terreno, encaminhado em 1924 com a decisão do ministro da Fazenda Sampaio Vidal de que a doação deveria ser dada “a favor do Governo da República Brasileira, com a condição de usufruto a favor da Academia Brasileira.”[20] Ficava por decidir, porém, a precisa delimitação e configuração da área.
Coelho Neto, na sessão de 15 de outubro de 1925 comunicou ter acabado de tomar conhecimento, por Ataulfo de Paiva, que o Senado havia ratificado o veto do prefeito à cessão do terreno, solicitando esclarecimentos. O Presidente Medeiros e Albuquerque respondeu que esperava a manutenção do veto pelo Senado, mas que o problema já não dizia mais respeito à Academia, por se tratar de contencioso entre a prefeitura e o governo federal, pois a doação do prédio se dera a este com a condição de cedê-lo à ABL.[21]
O imbróglio burocrático permaneceu pelos anos seguintes, com manifestações de setores responsáveis pelo patrimônio público da prefeitura e da União solicitando informações e documentos à Academia (1931, 1934, 1938).
Finalmente, em 3 de janeiro de 1943 um ofício do presidente da Academia, embaixador José Carlos de Macedo Soares ao presidente da República assinala o começo do fim da longa pendência e deixa entrever a intensa ação de bastidores que deve ter ocorrido. Nele, o embaixador, antigo ministro da Justiça e Negócios Interiores de Getúlio Vargas e depois interventor em São Paulo lembrava que eventuais dúvidas porventura existentes quanto à propriedade do terreno já tinham sido dirimidas na Diretoria do Domínio da União, pleiteando assim a transferência definitiva à ABL do “domínio útil do terreno e construção”.
O processo dessa vez foi bem bafejado, pois no mês seguinte já recebeu parecer favorável do ministro da Fazenda Sousa Costa e se transformou em 11 de março de 1943 num decreto-lei assinado pelo presidente Getúlio Vargas, então acadêmico eleito para a cadeira 37, determinando a transferência.
Múltiplas leituras
Há, como se vê, uma pluralidade de significados materiais e simbólicos no prédio do Petit Trianon da avenida das Nações, depois presidente Wilson.
Rememoremos: o palácio foi construído para uma exposição comemorativa do centenário da independência do Brasil, a “Exposição Internacional do Rio de Janeiro”, constituindo o “pavilhão de honra” da França, sua denominação oficial.
O que, àquela altura, significaram exposição e comemorações?
Desde logo, um vigoroso esforço de afirmação nacional.
As exposições, industriais ou não, foram uma criação da Revolução Francesa e tiveram em geral a preocupação de exaltar as realizações nacionais e simultaneamente incrementar os negócios. A primeira delas, organizada pelo governo do Diretório em 1798, teve essa dupla finalidade, numa conjuntura em que a França emulava as realizações materiais inglesas, em plena Revolução Industrial. As muitas que se seguiram, em diferentes países, tiveram características semelhantes, destacando-se as de caráter internacional, como a “Grande exposição dos trabalhos da indústria de todas as nações”, de Londres, em 1851, a de Filadélfia, em 1776, comemorativa do centenário da independência norte-americana e a de Paris, de 1889, que comemorou os cem anos da Revolução Francesa.
O Brasil participou de várias exposições no século XIX e nas primeiras décadas do século XX organizou duas, a Exposição Nacional Comemorativa do Primeiro Centenário da Abertura dos Portos do Brasil, realizada na Urca em 1908 e a Exposição Internacional do Centenário da Independência, em 1922, localizada no centro da cidade.
Nesses anos iniciais do século XX o país buscava afirmar uma face moderna e progressista, que tinha na capital federal o principal emblema. “O Rio civiliza-se...” diziam os cronistas desde Pereira Passos, embalados pela remodelação urbana, pelo sucesso no combate à febre amarela e pelo fracasso da revolta da Vacina. E em alguns outros estados e capitais repetia-se certa euforia modernizadora, como em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Belém e Manaus, estas últimas estimuladas pelo boom da borracha.
Para 1922 convergiram os esforços de demonstrar ao mundo o resultado de tais sucessos. As comemorações do centenário da independência eram excelente pretexto para apresentar ao mundo um novo Brasil, menos colonial e atrasado e mais próximo aos estágios considerados superiores da civilização e identificados com a Europa ocidental e os Estados Unidos.
Dessa forma, planejou-se uma grande feira internacional sob a forma de Exposição, como suas congêneres dos países então denominados “adiantados”. Foram definidos espaços para os pavilhões dos diversos países e promovido um Congresso Internacional de História da América, a cargo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, presidido pelo também acadêmico Afonso Celso, entre outras inciativas.
Fazia-se assim um vigoroso esforço de afirmação nacional. Esse espírito foi captado e exposto com surpreendente franqueza por Afrânio Peixoto quando, no discurso de inauguração do Petit Trianon, disse, na condição de presidente da Academia, que o sentido dos “quatro séculos de civilização na jovem e livre América” era o de que se buscava uma tradição, entendendo-a como “o passado que deve existir, para honra do presente, para crença no porvir”, alimentando o patriotismo, por sua vez “afirmação necessária da nacionalidade”. E acrescentava: “E onde ele não existe, impõe a vida social que seja criado.”[22]
Todo esse trabalho de afirmação nacional ocorria num país agitado há alguns anos por diferentes crises e manifestações de insatisfação, que não poderiam aparecer na retórica oficial de 1922, quando da Exposição Internacional: insatisfação social no nascente operariado, atuação de anarquistas, fundação do Partido Comunista Brasileiro e do Centro D. Vital, rebelião tenentista, denúncia dos defeitos da Constituição, atraso no campo, incômodo com o parnasianismo e o simbolismo.
Em 1923, quando da inauguração do Petit Trianon, ainda ocorreria a revolução do Rio Grande do Sul, opondo maragatos e chimangos. Se em 1922 ignorou-se a problemática política e social, no ano seguinte a crise no Rio Grande foi lembrada pelo ministro e acadêmico João Luís Alves na cerimônia de instalação da ABL, mas com sentido positivo, pois se firmara o Pacto de Pedras Altas, encerrando o conflito, “motivo de júbilo para todos os brasileiros e para esta Academia, que pode celebrar a sua solene instalação nesta casa, sem as tristezas de uma luta entre irmãos...”[23]
Os valores proclamados
O sentimento nacionalista era complementado na retórica acadêmica pela percepção do significado da simbologia, da tradição, da latinidade e da civilização, todos valores com os quais a Academia se comprometia.
Afrânio Peixoto, no discurso de despedida do Silogeu, em 13 de dezembro de 1923, lembrou que “as coisas veem. Veem, ouvem, sentem, pensam e têm saudades... O mundo, que é representação, que seria para nós, se lhe não déssemos nossas emoções e ideias, que o enfeitam...”[24] Referia-se de modo schopenhauriano ao antigo prédio do Silogeu, como poderia referir-se ao novo, do Petit Trianon.
Essa representação, entretanto, por mais abstrata que fosse, tinha uma realidade que superava muitas outras aparentemente mais concretas. Assim, dois dias depois, no discurso na nova sede, afirmava que a Academia tendia a ser “o maior órgão de nossa tradição”, pois ao contrário da instabilidade política, das revisões constitucionais do Império e da República e da superação dos códigos legais, havia uma instituição “aristocrática, vitalícia e imortal”, que era a ABL.
Fazia dessa forma o presidente alusão aos acontecimentos que se desenrolavam fora do recinto acadêmico, mas profetizando que “séculos depois, quando tanta cousa houver mudado no Brasil, será uma coluna sempre erguida e forte, pela língua, pela literatura, pelos costumes e pelas maneiras, a conservar, a perpetuar, a sublimar o nome e a fama brasileiros.” Fazendo eco a Afrânio Peixoto, o embaixador Conty respondeu no mesmo diapasão que “os acadêmicos estavam acima dos acidentes e das contingências que podem perturbar outras instituições, acima das paixões que agitam as massas...” [25]
Estabilidade, num mundo em permanente mudança, era a mensagem.
A liderança da latinidade, por sua vez, era um valor apreciado pela França desde o Iluminismo, que no século XIX tornou-se explícito numa política de Estado, quando Napoleão III o proclamou – falando de uma “América Latina” - no contexto da invasão do México. Por essa razão, aliás, a conceituação luso-espanhola se contrapõe ao conceito, tendendo a considerar uma América Ibérica e não uma América Latina.
Afrânio Peixoto proclamou o papel da França nessa liderança, afirmando que a doação do Petit Trianon significava que o país “quis dar-lhe [à Academia] uma sede, um lar, um templo, onde oficie o espírito latino, francês, brasileiro, para glória comum de nossa civilização...” O embaixador Conty destacou o parentesco latino da França e do Brasil, sublinhando que este tinha duas fontes idênticas, uma vinda de Coimbra e a outra do solo gaulês, caracterizando a existência de uma mesma família, pela “comunidade de inspiração, convergência de pensamentos e analogia de expressão”. E concluiu definindo um tipo de latinidade especificamente francês e iluminista, antibarroco, dizendo que “o Petit Trianon carioca ficará em vossas mãos como um símbolo. Sua arquitetura do século XVIII, época da razão pura, de fina crítica e de sabedoria fresca e seca, tornar-se-á para vós uma fortaleza contra a escola da retórica que ameaça todos os descendentes dos latinos”.[26]
Todas essas valorações tendiam para o valor maior, proclamado em boa lógica positivista e evolucionista ainda em moda, a civilização, que assim era oposta à barbárie e ao obscurantismo.
O presidente Afrânio Peixoto sublinhou que a França tinha sido sempre para o Brasil a “mestra de inteligência, de gosto, de civilização”, discurso que o ministro João Luis Alves reiterou em termos entusiasmados. Mas coube ao acadêmico Luís Murat a palavra mais encomiástica da noite, apresentando a França como a nação da liberdade, a defensora da causa geral da humanidade e a sintetizadora e generalizadora da cultura das demais nações, isto é, o único país com vocação efetivamente universalista.[27]
No discurso civilizatório elaborado em torno ao Petit Trianon ressaltava a tendência ideologicamente dominante nos setores dirigentes da sociedade brasileira: existia um ápice do desenvolvimento humano que fora atingido no mundo euro-norte-americano; a França estava nesse pódio em lugar de destaque, traduzindo a vertente latina do progresso; o Brasil, como galho do tronco latino estava indelevelmente a ele ligado e “condenado”, como dissera Euclides da Cunha, ao progresso; a elite brasileira já vivia nesse mundo civilizado e cabia-lhe conduzir o restante da população a esse fim.
Era uma teleologia, traduzida em obrigação histórica.[28]
A geopolítica francesa
O espírito latino que identificava França e Brasil no discurso de Afrânio Peixoto e dos demais acadêmicos que se manifestaram na sessão inaugural do Petit Trianon foi entusiasticamente recebido pelo embaixador Conty, que não só o reiterou como destacou que a doação se fazia num quadro de estreita cooperação entre os governos francês e brasileiro, pois este acabara, por sua vez, de fazer importante donativo de aparelhagem à Escola de Medicina de Paris.
O diplomata francês em sua alocução, além de fazer referência aos antigos vínculos entre os dois países, entendeu oportuno chamar a atenção para a importância do recém proclamado modernismo literário paulista, como uma necessária e bem-vinda afirmação da independência cultural do Brasil, que entretanto em nada obstava as relações franco-brasileiras. Não se esqueceu de concluir dizendo que a partir de então o Petit Trianon se constituiria no templo onde se comunicavam corações e mentes das duas nações.[29]
Na palavra do ministro João Luís Alves reiteraram-se as hipérboles, com a imortalidade dos acadêmicos sendo associada à “imortalidade do nosso culto pela França e pelo seu gênio.”[30] E houve igualmente um aceno pragmático, o anúncio da criação do Instituto Franco-Brasileiro de Altos Estudos, consolidando os cursos oferecidos pela Universidade do Rio de Janeiro com apoio do governo francês. 207
Qual o significado por detrás dessa retórica oficial?
Para o governo francês, tratava-se de uma política de Estado – uma precursora do que chamamos “soft power” - na qual a cultura, e em especial a literatura, a história, a filosofia e as artes plásticas, assumiam um papel fundamental para manter a presença e a influência francesa no Brasil e na América do Sul. Era patente, embora não fosse usualmente explicitado, que essa política se voltava contra a extensa influência econômica inglesa no país, que vinha do século XIX e que após a Primeira Guerra Mundial já começava a ceder terreno ante a expansão do comércio norte-americano. Entre a libra e o dólar, a França não podia oferecer divisas de maior monta e precisava assim recorrer a outros meios para manter sua relevância no país.
Um destes meios foi a criação no Rio de Janeiro da primeira embaixada francesa na América do Sul, como assinalado pelo embaixador Conty em sua fala. Outro, foi a organização, em 1919, da missão militar francesa, chefiada pelo general Maurice Gamelin, contratada pelo governo brasileiro com o objetivo de modernizar o exército e que, devendo durar quatro anos, estendeu-se por vinte, até 1940.
Nesse contexto, deve ser computado um terceiro braço, o soft power, a política cultural e, nela, a doação do prédio do Petit Trianon à Academia Brasileira. Se a cooperação com a Academia Brasileira de Letras e o Instituto de Altos Estudos apontavam para o futuro, a política cultural já vinha de antes. Podemos lembrar o convite a Oliveira Lima para falar na Sorbonne sobre a formação histórica da nacionalidade brasileira e em anos mais recentes a atuação de Paul Claudel e Darius Milhaud no Rio de Janeiro, respectivamente chefe e secretário da representação diplomática, cuja missão precípua era engajar o Brasil na guerra ao lado dos Aliados, mas que acabaram realizando uma relevante diplomacia cultural.
Do lado brasileiro, além da inequívoca identidade com a cultura e a língua francesa – visitantes como Anatole France e Georges Clemenceau, entre tantos outros, impressionavam-se favoravelmente com a fluência observada em seu idioma – havia também uma certa Realpolitik no desejo de diminuir a excessiva dependência para com a Inglaterra. Isso já ocorrera em relação à Alemanha em diversos setores, inclusive o militar e se dava com maior facilidade ainda com a França.
A centralidade do Rio de Janeiro
Outro significado do Petit Trianon, e não menos importante do que os demais, estava no reconhecimento implícito da centralidade política e cultural da cidade do Rio de Janeiro na federação brasileira. Era a capital federal, como tinha sido a Corte no Império, e sediava, além dos ministérios, dos palácios do governo e da justiça, das câmaras alta e baixa e das representações diplomáticas, as instituições culturais de maior relevância do país, como a própria Academia, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Nacional de Medicina, a Academia Brasileira de Ciências e a recém fundada Universidade do Rio de Janeiro. Ademais, continuavam as transformações de sua área central, agora com o arrasamento do morro do Castelo e o surgimento de uma vasta área plana, de que o terreno ocupado pelo Pavilhão francês era parte.
Se em 1905, em meio ao movimento urbanizador de Rodrigues Alves e Pereira Passos se construíra o prédio do Silogeu, ao lado do Passeio Público, para reunir aquelas instituições tradicionais, inclusive a Academia Brasileira de Letras, em 1922 os novos ventos modernizadores produziram outras edificações para a Exposição Internacional, uma delas incorporada ao patrimônio material e simbólico da cidade em 1923 – o Petit Trianon.
É verdade que o Distrito Federal, isto é, a área geográfica da cidade, perdera desde 1910 para o estado de São Paulo o PIB industrial, mas ainda exercia a liderança política e cultural, que a doação do palácio à Academia vinha reforçar. A face do Brasil, como dissera Afrânio Peixoto em seu discurso inaugural, continuava a ser o Rio de Janeiro.
Os múltiplos significados que ressaltam da existência do Petit Trianon deixam entrever denominador comum de natureza sociológica, a presença de uma elite sociocultural e política voltada para a realização de uma ideia, a da consolidação material da Academia. O legado de Francisco Alves dera certo desafogo e liquidez à vida financeira da instituição. A doação do Petit Trianon consolidou este processo, dando sede exclusiva, mais ampla e confortável, do que o condomínio existente no Silogeu. Com a vantagem adicional, comentada por vários acadêmicos à época, de que a então avenida das Nações era muito mais tranquila do que a esquina da Lapa com o Passeio Público, onde os discursos acadêmicos dividiam a atenção com as buzinas dos automóveis e o ruído dos bondes nos trilhos.
A doação e sua confirmação jurídica, apesar da resistência da prefeitura quanto ao terreno, foram certamente facilitados pela coesão das pessoas que participaram do processo, que por qualquer critério metodológico usado devem ser classificadas como constituindo uma elite. Para quem dela fazia parte, a capital federal, com seus quase 1,5 milhão de habitantes num país de 30 milhões, era uma aldeia e eles os seus “homens bons”, como na colônia. Situação, aliás, pela qual a Academia foi criticada ao longo de décadas, até os nossos dias, em sucessivas conjunturas do processo modernizador brasileiro, quando se discutiu sua sintonia ou dessintonia com a sociedade e a cultura do país. Entender os significados dessas sucessivas conjunturas é outro exercício de análise histórica que demanda sutileza para recusar justamente aqueles maniqueísmos fáceis que fazem nossa percepção do passado recair no anacronismo.
Esse “clima de aldeia” explica a rapidez da solução de doar o prédio ao governo federal sob condição de repasse à Academia: se o edifício foi erguido em quatro meses, passou-se pouco mais de um ano entre a conversa no gabinete de Mario de Alencar e a sessão inaugural de 15 de dezembro de 1923, o que compreendeu as conversações com o governo francês, o trabalho junto ao governo brasileiro e a neutralização dos arreganhos da prefeitura. Não era pouco, considerando a inércia burocrática nos dois países.
O trânsito fácil da direção acadêmica com os confrades que exerciam cargos públicos naquele momento, como os ministros Felix Pacheco e João Luís Alves, ou que os tinham exercido, como Lauro Müller e a agilidade cartorária para ratificar a documentação, inviável noutras circunstâncias, demonstra o acerto da tese: todos se conheciam, todos estavam de acordo com o objetivo comum. O problema que restou, o do terreno, este foi remetido para dois entes públicos, União e prefeitura e resolvido por soluções e por atores semelhantes vinte anos depois.
Estava consolidada uma materialidade e ao mesmo tempo uma simbologia: o prédio de ar neoclássico sintetizava o que os acadêmicos de 1923 entendiam como certa vocação apolínea para o equilíbrio e a estabilidade, por sua vez garantia moral, intelectual e estética da imortalidade da instituição.
A Academia, como o Brasil, deveria ser eterna.
[1] Ata da sessão de 25 de janeiro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[2] Ibidem.
[3] José Ortega y Gasset, El tema de nuestro tempo. Madri: Revista de Occidente, 1956, p. 63.
[4] Louis Réau, L’Europe française au siècle des Lumières. Paris: Albin Michel, 1951, p. 266.
[5] Odile Rudelle, La famille républicaine moderée. De Jules Ferry a Raymond Poincaré. Actes du Coloque International de Rome (1994), Roma: Escola Francesa de Roma, 1997, p. 179.
[6] Antes, em 1899. havia protagonizado o “affaire Millerand”, uma polêmica ao entrar para o ministério, no bojo do conflito entre os marxistas revolucionários e os setores da esquerda que admitiam a convivência com o capitalismo. Jean Baptiste Duroselle, A Europa de 1815 aos nossos dias. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 168. Jean Phiilippe Dumas, Alexandre Millerand. Un combattant à l’Elysée, Paris: CNRS, 2022, p. 99.
[7] Pavillon d’Honneur de la France. A França no Rio de Janeiro. Paris: Comissário Gral do Governo e Comitê Francês das Exposições, s/d, p. 7.
[8] Ata da sessão de 25 de janeiro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[9] Cordialidade franco-brasileira. Oferta do “Petit-Trianon” à Academia Brasileira de Letras. O Jornal, Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1923.
[10] Ata da sessão de 1 de fevereiro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[11] Ibidem.
[12] Ata da sessão de 7 de junho de 1923; Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[13] O Jornal, 22 de julho de 1923.
[14] Jornal do Brasil, 6 de julho de 1923.
[15] Ofício de 4 de outubro de 1923, do presidente Afrânio Peixoto ao diretor da Repartição de Águas e Obras Públicas. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[16] Ata da sessão de 13 de dezembro de 2023. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[17] Ata da sessão de 15 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[18] A carta se deveu a uma solicitação de Afrânio Peixoto ao embaixador a fim de precisar o papel que Graça Aranha tivera nas negociações. Ata da sessão de 20 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[19] Escritura de doação do Palácio P. Trianon, outorgante o governo francês, outorgada a nação brasileira. Cartório Roquette, Eduardo Carneiro de Mendonça. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[20] Ofício de 3 de janeiro de 1943, do presidente José Carlos de Macedo Soares, ao presidente da República, Getúlio Vargas. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[21] Ata da sessão de 15 de outubro de 1925. Arquivo da Academia Brasileira de Letras. Na mesma sessão há manifestação do acadêmico Rodrigo Otávio, que na condição de advogado já dera opinião semelhante numa consulta que lhe fora feita em 1924.
[22] Ata da sessão de 15 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[23] Ibidem.
[24] Ata da sessão de 13 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[25] Ata da sessão de 15 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[26] Ibidem.
[27] Ibidem.
[28] Arno Wehling. Transformismo, evolucionismo e historicismo. In A invenção da história – estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: UGF-UFF, 2001, p. 61.
[29] Ata da sessão de 15 de dezembro de 1923. Arquivo da Academia Brasileira de Letras.
[30] Ibidem.
As salas
No jardim, junto à entrada do Petit Trianon, encontra-se um dos mais conhecidos símbolos da Casa, a escultura em bronze de Machado de Assis, de autoria de Humberto Cozzo.
O Saguão, com piso em mármore, lustre de cristal francês e peças de porcelana de Sèvres, conduz ao Salão Nobre, ao Salão Francês e à Sala Francisco Alves. O andar térreo compreende, também, a Sala dos Poetas Românticos, a Sala Machado de Assis e a Sala dos Fundadores.
No Salão Francês, o Acadêmico eleito cumpre a tradição de permanecer sozinho, em momentos de reflexão, antes da cerimônia de posse. A seguir, Acadêmicos especialmente designados buscam o novo confrade e o introduzem no Salão Nobre, onde será empossado na Cadeira para a qual foi eleito.
Nas solenidades, à semelhança da Academia Francesa, os imortais brasileiros envergam o fardão, vestimenta verde-escura com folhas bordadas a ouro, que tem como complemento um chapéu de veludo negro com plumas brancas e uma espada. As Acadêmicas, que passaram a integrar a Casa de Machado de Assis em 1977, usam um longo e reto vestido de crepe, na mesma tonalidade do fardão, também com folhas bordadas a ouro.
Além das posses, realizam-se no Salão Nobre as Sessões Solenes e Sessões Ordinárias comemorativas.
No lado oposto ao do Saguão, a Sala dos Poetas Românticos abre-se para um belo pátio e reverencia Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela e Gonçalves Dias, imortalizados em bustos de bronze.
Na Sala Machado de Assis, organizada pelo Acadêmico Josué Montello, destacam-se objetos pessoais do escritor, como: livros de sua biblioteca, a escrivaninha onde trabalhava e um belo retrato a óleo de autoria de Henrique Bernardelli.
A Sala dos Fundadores e a Sala Francisco Alves, onde são realizados os lançamentos de livros dos Acadêmicos, abrigam importantes obras de arte e peças decorativas do acervo da Academia.
No segundo andar do Petit Trianon, estão a valiosa Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça, a Sala de Sessões e o Salão de Chá, onde se reúnem os Acadêmicos, às quintas-feiras.
Uma grande reprodução dos Estatutos da Academia, de 1897, assinados por Machado de Assis, Joaquim Nabuco e membros da primeira Diretoria, está afixada na Sala de Sessões, que também possui dois painéis com retratos dos fundadores e dos patronos das 40 Cadeiras da ABL.