A Topbooks acaba de lançar "Ensaios Reunidos - Volume 2", com trabalhos de Otto Maria Carpeaux publicados entre 1946 e 1971 em diversos jornais e revistas. Em geral, faço restrições a este tipo de coletânea que recolhe artigos, crônicas, contos, ensaios ou mesmo poemas de determinados autores que espalharam textos muitas vezes circunstanciais, em longa e constante atividade na imprensa. Releve-se a boa intenção e a honestidade dos pesquisadores, mas, em princípio, um autor com acesso às editoras (seria o caso de Carpeaux) teria soberania suficiente para escolher o que, em sua opinião, merecia ser publicado em livro.
Há exemplos em que a importância de um Machado de Assis, ou do próprio Carpeaux, obriga à permanência no mercado cultural. Qualquer texto de Machado, seja inédito ou não, merece publicação póstuma. Acredito que Carpeaux esteja no mesmo caso.
Não dá para destacar um ou outro trabalho desta coletânea. Mas Carpeaux tornou-se um autor indispensável ao publicar sua monumental "História da Literatura Ocidental", em sete volumes, e sua pequena, mas fundamental história da música, referência obrigatória não apenas para iniciantes na matéria, mas para qualquer especialista isento e bem informado.
Carpeaux foi um dos poucos amigos com o qual tive intimidade profunda, profissional e quase doméstica. Deixamos mais ou menos ao mesmo tempo o "Correio da Manhã", que não mais podia agüentar a barra da posição contra o regime militar que um grupo dentro da redação tomara a partir de abril de 1964. Desempregados, aconteceu uma das coisas mais surpreendentes da minha e da vida do Carpeaux: éramos convidados para palestras por diretórios de faculdades, por grupos espalhados em todo o Brasil, que desejavam ouvir o que tínhamos a dizer sobre a situação que atravessávamos.
O problema é que eu era pior do que o Lula, com grave problema na fala, o que me obrigava a falar depressa para que não notassem o defeito. Metade do que eu falava não era entendida. E a metade entendida não era suficientemente clara para que ficassem sabendo minha opinião.
Carpeaux era gago, imensamente gago. Apesar disso, durante dois ou três anos, era rara a semana em que não estávamos em algum canto do território nacional, em reuniões muitas vezes surpreendentes e equivocadas. Lembro que, numa cidade do sul de Minas, ao entrarmos no auditório lotado, vimos na mesa que nos destinaram, devidamente paramentados, nada mais do que o bispo local e o coronel comandante do quartel daquela região. A solução foi falarmos sobre autores mineiros, Drummond, Guimarães Rosa e... Ary Barroso. Fomos razoavelmente aplaudidos. Mas, ao voltarmos ao hotel, a prudência nos obrigou a fazer as malas e enfrentar a noite na estrada, voltando para o Rio.
Aliás, a gagueira do Carpeaux era antológica e tinha contraditórias explicações. Uns diziam que ele ficara gago ao ver atrocidades nazistas cometidas contra parentes seus. Curiosamente, ele não era gago em latim, embora o fosse em alemão e português. Mesmo assim, quando queria, tinha um truque (era cheio de truques) para disfarçar. Nas palestras que fazíamos, posso garantir que dificilmente percebiam a sua disfemia.
Mas, na intimidade, solto em si mesmo e com as pessoas mais próximas, ele não fazia questão de esconder o defeito na fala. Já contei por aí que fomos a Belo Horizonte para falar sobre dois filmes de Maurício Gomes Leite, "Vida Provisória" e um documentário sobre o próprio Carpeaux. Eu ao volante de um Simca Chambord, que teve o privilégio, pouco mais tarde, de ser preso e autuado com o seu dono no Dops da rua da Relação, por suspeita de guardar panfletos subversivos e armamentos igualmente subversivos. Tenho a foto, publicada em jornal, do meu Simca no pátio interno do Dops, isolado por faixas de advertência, como se o carro fosse explodir de repente.
Na viagem à capital mineira, Carpeaux ao meu lado, ele citou Kierkegaard. Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, "Ki...Ki...Ki..." e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante.
Grande, grandíssimo Carpeaux! Na mesma ocasião, numa palestra em Ouro Preto, enquanto eu gastava dez, 15 minutos para dar uma resposta a qualquer pergunta que nos faziam, ele dizia tudo em três, quatro palavras, pronunciadas em ritmo normal.
E o mais importante. Eu praticamente não dizia nada enquanto Carpeaux dizia tudo na economia verbal que lhe era própria quando enfrentava auditórios. Lembro que nos perguntaram a opinião sobre um autor que estava em moda. Falei uns dez minutos sem deixar claro se admirava ou não o escritor que hoje está, injustamente, creio eu, esquecido.
Carpeaux o detestava, nunca escrevera nada sobre ele. Mas provocado, tinha de dizer alguma coisa. A pergunta era: "Conhece a obra de fulano?" Carpeaux respondeu com apenas três palavras: "Pouco. Mas demais".
Folha de São Paulo (São Paulo) 3/2/2006