Ninguém me contou. Vi documentário produzido por grupo norte-americano e inglês sobre a invasão do Iraque durante os momentos iniciais, que foram iguais na truculência e na falta de sentido aos de qualquer outra guerra convencional, onde há um invasor e um invadido. Gigantesco avião, desses capazes de transportar Estados-Maiores, tanques, lanchas, peças de artilharia pesada e, evidentemente, bombas de imenso poder destrutivo.
As tomadas dentro do avião, já no espaço aéreo iraquiano, mostram a tripulação preparando-se para o ataque considerado defensivo, uma vez que a formidável máquina voadora pode, hipoteticamente, ser atacada por míssil inimigo.
O oficial encarregado de jogar as bombas prepara a parafernália tecnológica, testa os infinitos botões do seu painel -botões que indicam os alvos e a carga mortal que deverá despejar. Tudo pronto, ele abre o bolso superior de sua túnica militar e, de uma carteira de couro, tira uma foto doméstica, aparentemente feita num quarto de criança, em que aparece seu filho de oito ou nove anos, braços abertos, no gesto de quem quer abraçar o pai. A foto é colocada em frente, bem em cima do botão correspondente ao compartimento das bombas que, lá embaixo, matarão crianças iguais àquela.
O narrador do documentário, com voz comovida, patriótica, diz que o oficial, ao jogar bombas sobre o inimigo, está agindo para garantir ao filho e aos filhos daquele filho um futuro de paz e prosperidade. E tome bomba.
Não tenho qualquer simpatia por Saddam Hussein, mas sempre tive um baita respeito por aquela terra e aqueles desertos cor de areia e barro, entre os dois rios que formaram o Paraíso Terrestre narrado na Bíblia e onde a maioria dos entendidos localiza o início da civilização humana.
O Tigre e o Eufrates, embora banhando terras do Oriente, foram testemunhas de tudo o que formaria, ao longo dos séculos, a humanidade ocidental. Nas suas planícies pastaram os rebanhos de um Abraão errante. Com o barro úmido do seu solo foi levantada a torre de Babel, quando os homens, querendo chegar ao céu, começaram a se desentender e a falar línguas estranhas entre si.
Por ali passaram os camelos empoeirados e as ovelhas mal nutridas dos filhos de Jacó. Num daqueles atalhos, seus 12 filhos venderam um deles para ser escravo do Egito. E ali choraram os profetas anunciando a queda dos impérios.
Doze séculos da história humana foram ali decisivos para o destino da espécie humana. Semiramis plantou seus jardins suspensos, uma das maravilhas do mundo antigo. Nabucodonosor teve a idéia de construir sua estátua de ouro e barro - o maior símbolo do poder e da queda. "Ali rugiu Isaías diante de reis e cantou Elias diante de sacerdotes" - estou citando Humberto de Campos, que tem uma página admirável sobre a região que serviu de berço para as "Mil e Uma Noites", Sheerazade levando na conversa o sultão Schahriar, a maior contista da humanidade, que criou Aladim e sua lâmpada de maravilhas, Simbad, o marujo e as aventuras do califa Harum al-Rachid.
Ali se elevou Bagdá com seus califas e os 40 ladrões da caverna de Ali Babá. Neste cenário de lenda e história, foi ali que alguns etnólogos garantiram que o macaco desceu da árvore e se fez homem.
Todo esse passado se resume agora em deserto e escombro, criando a metáfora mais crua e cruel do destino humano. Aparentemente, nada temos com aquilo, exceto algumas empreiteiras nacionais que ali construíram estradas, represas e venderam frango sem febre aviária. E estão de mão abanando até hoje.
Fica difícil juntar o passado com o presente quando se pensa e se olha o Iraque de hoje. Ao derrubarem estátuas de Saddam Hussein, puxadas por cordas, lembrei a estátua de Nabucodonosor feita de ouro e barro. Tirano por tirano, nada restaria dos dois monumentos que eles próprios ergueram à sua glória.
Saddam tem as mãos e o bigode sujos do sangue -segundo dizem- de um milhão de vítimas. Nabucodonosor teve menos, proporcionalmente à densidade demográfica da sua época. Levou para o cativeiro um povo inteiro que, sob os rios da Babilônia, pendurava suas harpas, recusando-se a cantar, no exílio, a saudade da Sion devastada.
Hoje, os descendentes dos poderosos súditos do mesmo Nabucodonosor nem harpas têm para pendurar sobre os salgueiros à margem do Eufrates e do Tigre -rios de uma Babilônia destroçada.
As harpas não ficam bem em suas mãos. Elas agora empunham armas, enchem carros-bomba de explosivos para expulsar o invasor que alegou a mentira mais deslavada da história para se sentir no direito de invadir.
Longe, do outro lado de vários e imensos mares, cruzados agora por navios e aviões com pilotos que botam o retrato dos filhos no painel com o qual despejarão as bombas, o povo que detém o maior poderio econômico e militar se reúne dominicalmente nas igrejas e templos dos vários grupos cristãos.
Antes de ir jogar golfe ou promover o churrasco nos jardins de suas casas, ouviram, edificados, os profetas antigos que se ergueram com a força medonha da voz que clama contra a tirania. E que dariam a mão, o braço, o corpo inteiro se um dia esquecessem de Sion.
Folha de São Paulo (São Paulo) 10/2/2006