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O guarda-chuva e a botânica

 

A educação, que geralmente é confundida com ensino, sobretudo aqui no Brasil, nunca foi lá essas coisas entre nós, sendo que o ensino consegue ser pior ainda. Reúne-se 30, 40 alunos numa sala combalida, quase sórdida; durante três, três horas e meia, um professor mal remunerado ensina a correta colocação dos pronomes oblíquos, o nome dos rios da margem esquerda do Amazonas e a data da proclamação da República. Manda os alunos fazerem o dever de casa. Grande parte deles nem tem casa para fazer o dever.


Isso é ensino, não é educação. Mas nem mesmo a educação tem bons antecedentes entre nós. Meu pai era professor concursado, após algumas experiências pediu o boné e foi ser jornalista, e como tal pagou o leite das crianças, incluindo meu próprio.


Ele não se adaptava à burocracia que dominava os colégios, não apenas a burocracia, mas a burrice institucionalizada. Um dia apareceu lá em casa com um colega que estava desempregado. Era um senhor mais velho do que ele, magro, com fumos de solenidade, vestido sempre de preto, parecia um guarda-chuva. Fizesse sol ou chuva, sempre trazia no braço um outro guarda-chuva, para evitar confusões: eram duas entidades diversas mas não conflitantes, ele, que parecia um guarda-chuva, e o próprio guarda-chuva.


Era professor de botânica e entrou em colisão com o colégio. Como também se tratava de um concursado, não podiam demiti-lo. O diretor comunicou-lhe que ele não mais daria aulas de botânica, mas de latim. "Eu não sei latim!" reclamou ele.


O diretor não acreditou. Um botânico devia saber o nome de todo o reino vegetal em latim, logo, sabia latim. Manteve a nomeação. Revoltados, os dois guarda-chuvas prometeram nunca mais pisar no colégio.


Meu pai levou-os ao jornal em que trabalhava. Descolou para o amigo e seu guarda-chuva uma vaga na reportagem. Estrearam fazendo uma suculenta e ilegível matéria sobre o Jardim Botânico.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 13/2/2006