A República de Pau Vermelho está em crise. Seria um pleonasmo, uma vez que as repúblicas irmãs de Pau Vermelho estão sempre em crise e em crise viveram os pauvermelhenses. Desta vez, porém, a crise será para valer. Estão todos cansados de crise e já nem os jornais vendem mais quando o país entra numa delas. Todos estão cheio da crise.
O povo ainda não está desesperado porque o país vence de quatro em quatro anos um torneio de bola de gude, jogo em que os pauvermelhenses são exímios. E, diante de tanta glória, a república abrirá trégua na crise porque novo torneio se aproxima.
O presidente de Pau Vermelho é relativamente popular. Sua popularidade só está abaixo da de seu rival mais sério, um cidadão que acaba de ser eleito o melhor do mundo na especialidade da bola de gude.
O presidente da República é arejado de idéias - pois não tem idéia alguma -, o que o torna útil a todas as manobras feitas pela infatigável classe dos fazedores de manobras.
E, quando a confusão aumenta, todos falam em caos. Aí todo mundo se alia novamente e os reacionários viram revolucionários e os revolucionários se transformam em reacionários. Graças a Deus e a um famoso acadêmico responsável pelo dicionário oficial do país, ninguém liga para as palavras em Pau Vermelho. Aparentemente, a pátria está salva, mas não está livre daqueles que desejam salvá-la.
Além do progresso, há ordem no país. Ficou estabelecida uma próxima crise, provavelmente após as eleições que se avizinham. As eleições em Pau Vermelho merecem registro à parte. A população fica de tal forma empolgada que, na véspera da abertura da primeira urna, há uma euforia geral, todos os candidatos estão eleitos e, eleitos todos os candidatos, não resta cidadão sem emprego público e sem outros benefícios prometidos durante a campanha eleitoral.
Todos em Pau Vermelho tendem a reformas e, quando o cidadão não tem reforma alguma para reivindicar, reivindica a reforma de sua mulher ou a reforma de uma letra protestada.
Mas, além das reformas triviais, há as grandes reformas, que incluem as reformas das reformas. O assunto provocou confusões e fusões inesperadas. Os reacionários viraram reformistas e os revolucionários - que inventaram a reforma das reformas -, quando se viram na mesma vala com os reacionários, desfraldaram a bandeira contra as reformas.
Desfraldar bandeira é uma expressão que tem vasto uso em Pau Vermelho. Mas, com bandeira ou sem ela, o pauvermelhense é, antes de tudo, um forte e tem justamente o raquitismo do homem do litoral - pois há raquíticos e litoral à beça na progressista república.
Há 50 anos, um elixir contra sífilis era tido como o maior benfeitor da nação. Os elixires estão em desuso, mas ainda há sífilis em algumas camadas cerebrais.
Os intelectuais de Pau Vermelhos já foram tuberculosos e, quando a tuberculose passou de moda, ficaram sem emprego ou pegaram Aids. A expressão "forte como o Pão de Açúcar!" significa que o sujeito é uma topeira da altura do Corcovado.
Este curioso país travou sua máxima epopéia contra as saúvas, pois, se o país não acabasse com as ditas, as saúvas acabavam com o país. A rigor, nem as saúvas acabaram ainda com o país nem o país acabou ainda com as saúvas. Como tudo em Pau Vermelho, há trégua também nessa epopéia e é possível que as forças conservadoras locais assinem um protocolo de coexistência pacífica.
A cultura vai bem, obrigado, há muito coquetel homenageando os mestres de Pau Vermelho. A agricultura não tem coquetel, mas, em compensação, tem grupos de trabalho estudando o fomento da própria. Esse estudo se prolonga há séculos, desde que um escriba luso por lá aportou e afirmou que na generosa terra "em se plantando, tudo dá". Ainda não deu muita coisa, mas, em compensação, ninguém cumpriu o "em se plantando".
Ainda sobre a cultura. Há um surto surpreendente de cultura na república, sendo que Pau Vermelho é o único lugar do universo onde os analfabetos não podem votar mas podem escrever livros.
O que torna a República de Pau Vermelho especial é a quantidade de reservas que possui. Além de reservas florestais, das reservas do subsolo, das reservas da seleção nacional, dos oficiais da reserva e das reservas morais da nação, há a incalculável reserva do pauvermelhense em geral, que é, antes de tudo, um forte, embora não saiba matemática.
A matemática não é amada pelo povo e pelos governantes. Isto é um mal, pois, ignorando a matemática e aritmética, há suspeita entre povo e governantes de que alguém está sempre roubando alguém, mas é uma simples suspeita. Na realidade, a república procura adquirir gigantescos computadores capazes de deglutir a honestidade dos orçamentos da nação, e aí acabarão as suspeitas. Infelizmente, os computadores chegam na Alfândega completos, mas há sempre alguém que rouba a placa dos dividendos, e aí os computadores ficam imprestáveis, nem acertam o milhar do jogo do bicho.
Então chega a noite e aí o país progride: metade da população fica em cima da outra metade, aumenta a explosão demográfica e diminui a renda per capita.
Folha de São Paulo (São Paulo) 24/2/2006