As mensagens de Ano Novo de Bin Laden já se atropelam, a esta altura, pela vitória do Hamas ou pelo insulto ao profeta no algo de blasfemo que nos veio da Dinamarca. Mais ainda, o presidente do Irã se esmera em mostrar como já vai longe o tempo de Khatami e do pedido pelo diálogo das civilizações.
Vamos ainda ouvir Bin Laden? Até onde é, ainda, o dono do medo e do pânico, ou fala quase póstuma após quase ano de silêncio? Voltou, dias após a frustrada tentativa americana de destruição do nº 2, Al Zawahiri, com os mísseis disparados de aviões sem piloto em aldeia do Paquistão. Continua vivo, tal como não mudaram as mensagens de Natal de Rumsfeld, mantendo sem data os marines no Iraque e a paga diária da represália, de cabeças locais e de soldados da ocupação.
Os tempos e pausas do recado do mais procurado dos terroristas em todos os tempos nos mostra como ora vê o inimigo no Salão Oval.
Pela primeira vez, oferece uma possível trégua ao Ocidente, na base de um Tratado de Tordesilhas. Saia Bush do Afeganistão e do Iraque e nenhum americano dormirá angustiado com um novo 11 de Setembro e a derrubada dos 334 metros do Library Building, em Los Angeles, que, como declarado por Bush, seria a seqüência da queda do World Trade Center. A oferta prosperou, no abalo pressentido ao governo, na iminência de perder a lei de exceção do Patriot Act, que permitiu a tortura, a espionagem continuada e Guantánamo.
Confiara Bin Laden, sobretudo, na crescente ruptura de Washington com a consciência européia, agora ferida pela contra-reação à queima das bandeiras dinamarquesas e reforçando a frente antiterrorista.
Mais que o desatamento incontrolável da vociferação islâmica contra a blasfêmia a Maomé, o que começa a grassar é a consciência do abismo entre os dois mundos. Pior ainda é a do desânimo de vencê-lo pelo círculo vicioso entre o terrorismo, cada vez mais multiplicado e anônimo, e a instalação de uma ordem internacional pela guerra preemptiva e o disparo de seus botões eletrônicos. O Irã não enfrentará marines se os Estados Unidos perderem a paciência com Ahmadinejad e forem à instantânea "Star Wars", que Rumsfeld pôs na mesa do xadrez estratégico.
No acenar com uma trégua, por mais que provocadora, dirige-se Bin Laden aos democratas americanos quando a ONU condena Guantánamo. Mas, tal como pretendeu na fala anterior, ajuda o rival John Kerry, reforçando, afinal, o republicano. Qual a vantagem na mensagem de Ano Novo, de encampar ostensivamente os massacres de Londres e Madrid, quando, há 20 dias, mais e mais se dessolidarizava a Europa ocidental da ocupação iraquiana? Saíram os espanhóis tal como Tony Blair não conseguirá manter os britânicos para além do próximo semestre, e se avolumam, sim, poloneses e búlgaros em Bagdá.
A fala de Bin Laden é a tentativa, ainda, de recuperar o comando único do terrorismo como o novo conflito internacional após a Guerra Fria. Mas não se deu conta das contradições que a resposta hegemônica lhe imporia, no pulular dos protestos e dos martírios colados a cada nova ocupação no Oriente Médio. Só cresce o direito do Iraque de tomar a frente do protesto, na terra e no sofrimento que são seus, sem invocar protetores nem recados atravessados. Nem Ahmadinejad, no Irã de agora, quer méritos interpostos na radicalidade que assume, voltada às suas origens, no confronto com Washington.
E quererão os Estados Unidos viver da trégua que lhes dará Bin Laden em novas eleições ou em novo acuo desastrado dos republicanos, pelo arreglo com Bush? Ou a lógica dos democratas, seu bom senso, afinal, removerá a "civilização do medo", levando de reboque - e aí, sim, e de vez- os seus fantasmas e beneficiários?
Bin Laden não é mais o dono da cheia e o estrito senhor de um velho pânico. À frente está, sim, o inimigo irracional e anônimo, criado pelo medo ocidental. Na revolta desatada contra as charges ao profeta, é vão que se enxergue uma estratégia ou se divise uma retomada de controle fitando tão-só os senhores da guerra, ou do Al Qaeda do tempo da queda das torres. O negociador do Ano Novo se foi, e o terrorismo crescente não tem mais cara.
Folha de São Paulo (São Paulo) 02/03/2006