As Nações Unidas vêm de criar Comissão de Alto Nível para enfrentar problema como o que a indescritível reação mundial às charges contra o Profeta tornou devastadoramente urgente. Não se imaginaria o atual porte da catástrofe quando, em novembro último, reuniu-se o grupo em Majorca, para ir ao fundo das conseqüências do 11 de setembro, e a retomada de uma possível cultura da paz. As últimas duas décadas do século XX podem ser vistas como quase uma "época de ouro", num começo de convivência de após a queda do Muro e de possível globalização num quadro democrático. Soam hoje como prematuramente obsoletas. Longe vai o tempo em que a política externa do governo Clinton evidenciava este largo propósito, antes que as lógicas da potência mundial remanescente cedessem às da hegemonia, por sua vez acirradas pelo terrorismo de Bin Laden.
Claro que em todas essas análises sempre se repete a síndrome provocada pelo diagnóstico de Samuel Huntington, a perguntar-se sobre a nossa entrada na era do dito "choque das civilizações". Este clichê dá, de barato, que existam "civilizações" e não só uma, em que toda história moderna convergia à expansão do universo de tecnologias e controles sociais sem fronteiras, a que o mundo identificou o conceito de progresso e melhoria social. Tal, não obstante o preço da concentração de riquezas, da redução de oportunidades sociais e eliminação crescente das diferenças, que identificariam culturas. E essas, sim, múltiplas e ameaçadas da morte na alma que ronda o domínio acrítico do Ocidente.
A tensão-limite desses dias é de uma consciência tardia deste conflito entre internacionalização das vantagens da civilização e a defesa da subjetividade dos povos a elas submetidos, que necessitam passar pelo crivo do assimilacionismo e da manutenção dos valores de uma identidade coletiva.
Não é outro o propósito, a largo prazo, dessa Comissão que tem diante de si a tarefa de trabalhar com este verdadeiro irracional do inconsciente coletivo do mundo islâmico, ferido pela invasão hegemônica do Ocidente em condições inéditas de envolvimento e expropriação. Não estamos mais na etapa do colonialismo clássico onde as periferias, de toda forma, viam-se frente a frente ao Império e poderiam negociar suas condições de sobrevivência identitária e de inserção no dito progresso da contemporaneidade.
Não há conflito nem menos "guerra de civilizações" mas, sim, negociação do que é próprio a um e outro destes processos: o da irradiação universal da tecnologia e o do aprofundamento das identidades, sem serem obrigados à trincheira estéril do fundamentalismo, de logo passado ao terrorismo. O tempo corre para que se possa, nesse domínio, responder à indagação, de há uma década, do antigo presidente do Irã, Khatami, exatamente na mira desse conflito e a pedir ao Ocidente o descortínio da modernização efetiva frente à sobrevivência das culturas.
A Comissão foi adiante, na iniciativa de Kofi Annan. Quer, de fato, que se passe da proposta de um diálogo à concertação de uma aliança. E não se trata de buscar apenas uma linha entre as divergências e as concordâncias entre os "modos de ser" e os "estilos de vida" das coletividades, que hoje chegam ao progresso pela via ocidental. É o que mostra a via chinesa, sem assimilacionismos absolutos, e nos faz deparar o mais traumático desses processos, envolvendo o mundo islâmico. Tal para abrir-se depois, ainda, a interrogação hindu no quanto uma nação, marcada por riquíssimas e distintas culturas, depara o vis-à-vis com o Ocidente na mais difícil das diacronias.
Princípio, talvez, fundamental desta investigação é o de nos darmos conta dos limites do terrorismo e de que forma não poderá ser vencido pelos clássicos procedimentos de torna a uma "cultura da paz". Ou a toda mecânica de um desarme internacional, que aprendemos com a "guerra fria", baseada num poder equivalente de dissuasões, e num perene alerta num mundo objetivamente definido por simetria de um poder de agressão. O uso à violência é hoje indiscriminado, anônimo, e vai muito para além da hipótese de uma conspirata internacional, ou da onipresença dos grupos de Bin Laden. A menina com casaco de dinamite que beija os pais e sai, em Gaza, para explodir-se num ônibus não responde a uma gangue mas, e dramaticamente, a um sentimento de desajuste na alma, de submissão a um poder externo de que ignora a dimensão do envolvimento, que se entrega ao estrito, intransitivo protesto pelo martírio.
Como hoje vencer-se um inconsciente coletivo, a tal ponto, atingido no seu imaginário por esta "guerra dos mundos", que a queda das torres transformou num espetáculo partilhado globalmente, num símbolo lúgubre de confrontos possíveis e continuados? Não há desarme simples para esta condição e a violência das respostas às charges do profeta mostra que a resistência continua e se torna incontrolável no universo das catástrofes decididas e dos "ajustes de contas" por vir.
Toda a tarefa da Comissão sabe o quanto enfrentará uma Muralha da China e o empenho se dá, por sobre os Estados, numa tentativa de conversa com a mocidade; com os grupos de imigrantes muçulmanos, sobretudo a partir das metrópoles européias, de ensaio de ações afirmativas, em que o Ocidente consiga superar um desprezo imemorial com a cultura islâmica, refugada no quadro do antimoderno e do, simplesmente, atrasado diante das conquistas da civilização. Sobretudo esse esforço hoje só pode começar com uma retomada do pluralismo na informação, desarmar o gatilho do conflito, que é a do monopólio do universo mediático.
A se desarmar a "guerra dos mundos" começa-se no próprio subliminal, com que o universo de após o 11 de setembro se fita e se teme. E o seu abismo só se vence por uma idéia hoje, cada vez mais subversiva, à civilização hegemônica: o de manter a diferença e o pluralismo cultural como retomada, possível, a seu tempo, de uma cultura da paz.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 03/03/2006