ADEUS A ASSIS CHATEAUBRIAND
Pronunciado no dia 5 de abril de 1968
É ainda a teu comando que obedeço, vindo aqui, vencidas todas as forças íntimas de resistência, para em nome dos teus companheiros e amigos da Academia Brasileira, dos teus companheiros, amigos e discípulos dos Diários e Emissoras Associados, aqueles que de mais perto receberam o influxo de tua sabedoria e a cálida afeição de tua vida, trazer-te o adeus com que selamos o nosso derradeiro encontro neste mundo. Ainda em pleno vigor, quando nenhuma perspectiva do fim poderia inquietar-nos a juventude, naqueles teus momentos de inesperado devaneio, propuseste que o de nós dois que sobrevivesse ao outro, deveria com toda a coragem e sobranceria, destemido e estóico, falar à beira da sepultura do que se fosse, para dar testemunho da amizade fraterna e hoje quase cinqüentenária que nos ligou, entre tantas vicissitudes e apreensões, na constância de uma colaboração que terá sido talvez única, na história do jornalismo brasileiro.
Aqui estou, não para dizer tudo quanto nos uniu, nem para falar do que juntos fizemos ao longo de tantas décadas, e sim para exaltar, como mereces, uma das maiores personalidades do mundo contemporâneo e, sem dúvida, a mais extraordinariamente representativa dos impulsos de criação e grandeza que movem o Brasil para seu espantoso futuro. Por isso que ninguém melhor acompanhou os teus passos, nem mais sentiu a força das inspirações superiores que te conduziram na ascensão procelosa, que tanto compartiu contigo as ansiedades, decepções e alegrias, é que a minha palavra adquire aqui, nesta hora solene em que se começam a formar os juízos da posteridade, o valor de um depoimento insuperável.
Vi-te, desde muito cedo, já curtido de lutas políticas na província, depois de forçar pela pertinácia e pelo destemor a validade da conquista de uma cátedra de que pretendeu privar-te a solércia de inimigos insones, do gênero dos que nunca faltaram, no curso de tua vida, companheiro invicto que adoravas combater, muito mais pelas peripécias da batalha do que pelo que tivesse em vista com a vitória. Eu não alcançara os vinte anos de minha idade e o nosso encontro deu-se à mesa de um grande homem, tão cheio de sabedoria, bondade e humana experiência, o velho e inesquecível professor Austregésilo, e desde aquela noite em que começamos debatendo com certa veemência o problema da primeira guerra que então não terminara e em face da qual mantínhamos, na imprensa, posição antagônica, como em tantas posições antagônicas vivemos estranhamente unidos, pelo fio de quase dez lustros, começou esta vinculação que hoje a morte corta em sua presença física, mas terá a perdurabilidade histórica de uma afeição transcendente à contingência temporal.
Conheci como ninguém as razões profundas do teu procedimento público, assim como a força do ideal patriótico que te conduzia e não te abandonou nunca, junto à fidelidade ao trabalho de que deste exemplo nas condições mais duras de tua longa existência e que deve ser apontada como um título de glória profissional que ninguém te pode arrebatar. Foste, sob certos aspectos, um dos homens mais poderosos do teu tempo, como chefe e criador desta enorme cadeia de instrumentos de comunicação com o povo que são os Diários e Emissoras Associados, dirigente de opinião pública, mas aqui declaro para que o futuro o saiba, que os grandes impulsos de tua alma generosa, que amavas como poucos a liberdade, que por ela fizeste sacrifícios e sofreste penas, sempre alerta e de ânimo viril, pois a coragem e a independência se fundiam em teu espírito como os elementos que garantem a durabilidade do bronze. O teu pensamento supremo, firme e incomovível em tuas obras como fonte de inspiração, era a da unidade do Brasil, e aqui está o mérito essencial de tua obra múltipla, nas campanhas memoráveis que fizeste, em favor da expansão cultural, artística e econômica, social e política do teu país. Eras o seu arauto no estrangeiro, o promotor incansável de tantas grandezas, o valorizador de suas realizações; e já sem forças, lutador irrendido, ainda acrescias a este Museu de Arte, monumental e incomparável, outros museus nos Estados, para educar o povo, elevá-lo espiritualmente, aprimorar as novas gerações e abrir as perspectivas de uma cultura popular que possui amplas condições para ser das mais importantes do mundo.
Nunca te faltou a fé, companheiro de meio século, e esse era o grande ímpeto de tua vida. Jornalista, primeiro que tudo, professor de Direito, político que deixou no Senado marcas imperecíveis de uma passagem esclarecedora e ilustre, patriota de todas as horas, mestre de três gerações de homens de imprensa, em tudo fulgurante e avassaladora personalidade, aqui estamos, os teus confrades da Academia Brasileira de Letras e os teus companheiros dos Diários Associados, para exprimir o nosso sentimento fraterno de admiração e saudade, e a certeza de que o Brasil fará justiça de acolher-te nas páginas de sua história, como um dos seus maiores filhos.
(Revista da Academia Brasileira de Letras, ano 68, vol. 115.)
MESTRE JOÃO RIBEIRO
Os fundos da Livraria Jacinto, na rua São José, eram muito escuros, ou pelo menos é assim que me lembro daquele lugar, passados mais de quarenta anos.
Meu velho e querido tio, Professor Austregésilo, vendo os meus pendores para a filosofia e o ensino do português e do latim, disse-me: “Você precisa entrar em contato com o João Ribeiro. Vou dar-lhe uma carta. de apresentação e estou certo de que ele vai recebê-lo muito bem.”
Cheguei aqui ao Rio, em 1918, carregado de cartas de apresentação, assinadas por meu Pai. Trouxe-as para o Almirante Alexandrino, para Clóvis Beviláqua, para o Seabra e algumas outras pessoas importantes. Ainda as tenho guardadas no meu arquivo. Por timidez, não entreguei nenhuma. Muito mais tarde, conheci aqueles amigos de meu pai e todos lamentaram que não os tivesse procurado. Então já eu era diretor de jornal e bacharel formado.
Mas a carta para o João Ribeiro ia dar-me oportunidade de conhecer um homem que eu muito admirava. Enchi-me de coragem, e, certa tarde, fui procurá-lo. Não sei por que, fazia idéia de uma pessoa alta, magra, talvez com uma barbicha. João Ribeiro era baixote, a cabeça chata de bom nortista, o andar lento e desengonçado. Naquele dia não fizera a barba e a gravata preta pendia para um lado. Observei tudo isso e, como naquele tempo tinha a mania de anotar em caderno os fatos do dia, pus por escrito as minhas impressões.
Tio Antônio Austregésilo dizia, na carta, que eu sabia latim e tinha vontade de dedicar-me ao magistério. Depois de ler, João Ribeiro, sem outro preâmbulo, começou a recitar os últimos hexâmetros do Livro 12 da Eneida, que contam o final do combate entre Enéas e Turno. Punha acento vivo nas lamentações covardes de Turno, pedindo misericórdia, e um entono de cólera nas considerações do Troiano, quando vê os despojos do jovem Palante, morto pelo inimigo. Tomou um ar sublime, ao dizer o verso: “E escaparás aqui, assim enfeitado com os despojos dos meus? Palante, Palante, te mata com este golpe; ele vai vingar-se no teu sangue criminoso.” E quase trágico: “Isto dizendo com arrebatamento, enterra a espada no peito que se lhe oferece; então desfalecem com o frio da morte os membros de Turno e a sua alma foge para as sombras, com um gemido.” Fiquei surpreendido com aquela recepção, pois João Ribeiro nada dissera, antes, como seria natural.
Depois do recitativo em latim, levou-me para um canto e perguntou-me quais eram as minhas intenções. Disse-lhe tudo. Advertiu-me contra as canseiras do professorado e acrescentou que não dava nada, e o melhor era qualquer outra profissão. “Quantos anos tem?” Disse-lhe que dezenove e contei-lhe que vinha de um Seminário. Notei o lampejo de ironia com que recebeu a notícia e o sorriso um pouco puxado para o lado esquerdo.
Fiquei desconcertado, como se houvesse falado alguma coisa desagradável. João Ribeiro acrescentou: “Vou dar-lhe uma carta para o Mendes de Aguiar, que é mestre na coisa. Estou certo de que farão boa amizade e conversarão em latim, como ele gosta.” E escreveu ali mesmo a carta. Falamos ainda de assuntos vários e ele indagou se eu era parente de um certo Capitão Athayde que estava em Sergipe por ocasião de ser proclamada a República. Disse-lhe que era neto. E ele fez: “Ah, ah!” sem que eu entendesse o que significava.
Nunca entreguei a carta ao Mendes de Aguiar, a quem jamais encontrei. Está guardada comigo, como uma generosa lembrança de João Ribeiro.
Com o correr do tempo, ia vê-lo na Livraria Jacinto, a quem confiara os originais das Histórias amargas, com prefácio de Coelho Neto. O mestre lera um dos contos e achara bom. “Você anda muito metido com o Machado,” disse-me. Confessei que sim e João Ribeiro aconselhou-me a não cair sob essa influência.
Escrevi artigos de crítica literária no Correio da manhã, inclusive um estudo a respeito de Dante, no sexto centenário de sua morte, a pedido de Edmundo Bittencourt. João Ribeiro parece que não lia jornal, mas mostrou interesse e eu dei vários recortes. Disse que gostou.
De quando em quando, ia procurá-lo na Livraria e conversávamos longamente, sendo que ele com muita malícia fazia apreciações a respeito dos nomes mais ilustres da literatura. Tenho saudades imortais e morrerei com elas. João Ribeiro está no fundo do quadro da minha juventude, entretendo as grandes esperanças.
Tenho como uma felicidade e uma honra ter podido, como presidente da Academia Brasileira, mandar levantar-lhe o busto na praça, pública, comemorando o centenário do seu nascimento.
(Vana verba, 1966.)
ENCANTAÇÃO DO FOGO
Outro dia, Brito Broca, que lê velhos jornais e velhas revistas, descobriu num deles, muito maior de trinta anos, uma nota sobre o romance Quando as hortênsias florescem, que escrevi, em 1919, e felizmente não foi publicado. Os originais existem, mas vou destruí-los no fogo, um destes dias. Deixou de aparecer na época, porque eu o escrevera tão ao vivo nas personagens e nos fatos, que o meu querido e saudoso tio Professor Austregésilo, para quem eu lera. alguns capítulos, me aconselhou a deixá-lo dormir na gaveta, ou o que lhe parecia mais acertado, substituir as pessoas e os episódios, mas isso, no meu ponto de vista, importaria em mutilar a obra de arte.
Passagens do Quando as hortênsias florescem viram a escassa luz da publicidade em jornais sem muitos leitores. Logo descobriram que um dos tipos retratados era o polemista Antônio Torres, com quem eu andara às turras na imprensa e que teve a imprudência de desafiar-me para um duelo. Torres era gordo e pesadão, jamais se dera a exercícios físicos e nada entendia de como se bater a espada ou florete. No tempo, eu tinha músculos de aço, o boxe era um dos meus esportes e o mestre Zé Ferreira adestrara-me na esgrima para “toucher à la fin de l’envoi” qualquer espadachim famanaz. Duma intervenção oportuna de Gilberto Amado, que advertiu Torres dos riscos que ia correr, resultou uma convenção de cavalheiros, segundo a qual não deveríamos mais nos engalfinhar em letras de fôrma.
Outra figura, traçada a tinta vermelha no romance, era um político da época que se metera em certa aventura amorosa e que eu, na minha inocência de escrita quase infantil, decidira relatar, com grande escândalo de meu tio, que era amigo do homem.
Tantas razões contrárias pareceram-me boas para deixar a peça literária adormecer no bosque. Nenhum príncipe encantado surgiu para despertá-la e, somente agora, Brito Broca foi encontrar suas reminiscências nas páginas desbotadas da A folha, de Medeiros e Albuquerque, e pediu-me que dissesse onde andava o livro, que sorte teve e por que o autor não o deixava correr a grande aventura literária.
Por isso, meu caro amigo, porque nada de bom havia nele, e quando o releio, um tanto encabulado comigo mesmo, não me canso de agradecer os conselhos que me foram generosamente dados para enviá-lo ao limbo donde não sairá jamais.
Não é que desgoste da tentativa malograda de inserir-me entre os romancistas do tempo. Antes fizera um outro livro denominado, novela de beira de praia, elocubrada e escrita no Seminário da Prainha, vendo ao longe as areias do Mucuripe, os coqueirais e as jangadas de vela, retornando do mar, no cair das tardes. Mas levado pelas circunstâncias à crítica literária em que me dei logo ares de rigoroso, não quis expor o flanco aos adversários, publicando a minha própria literatura.
Naquelas eras, eu, como os de minha geração, vivia impregnado de Anatole France. Foi sob a influência direta e implacável do Le Lys Rouge e do velho Monsieur de Bergeret que me descartei da angústia que se apossa do escritor e não o larga enquanto não lavra o papel. Sabem lá o que é a gente andar de conversas diárias com o Abbé Coignard, freqüentando “La Rotisserie de la Reine Pédauque”, ou perder-se em intimidades com o mundo de cínicos raisonneurs criados pelo demônio risonho que espalhou em tantos livros a mais impiedosa ironia que já escorreu do coração humano! E andar nessas companhias, quando se tem apenas duas décadas de existência, e nada é certo ou apenas seguro, e já se perdeu o Norte antigo sem que outro reconduza a alma e lhe dê novas e melhores inspirações!
Somente depois do encontro com Carlyle e Emerson, e, principalmente, quando me afundei na literatura de William James, é que as grandes sombras do ceticismo foram-se dissipando.
Nada resta quase daquele jardim antigo cujos perfumes entorpeciam. Foi debaixo de suas árvores que as hortênsias floresceram, um dia, na imaginação de um adolescente que viera de distantes paragens para tentar a temerária ascalada. O caminho da ascensão povoa-se de túmulos onde jazem tantas coisas mortas. Num deles está encerrado o romance Quando as hortênsias florescem, à espera da encantação do fogo...
(Vana verba. Conversas na Barbearia Sol, 1971.)