Rumsfeld se soma agora a Bush em dar o recado, por entre as entrelinhas, sobre a paz mundial. Os Estados Unidos, diz, vão resistir à tentação de sair de vez do Iraque. O caminho do bom senso político seria o de retirar-se por força da alegada "síndrome do Vietnã", repetida hoje no governo Bush.
Só que, contra Ho-chi-minh os Estados Unidos não venceram o conflito e em Bagdá derrubaram o inimigo e levaram Saddam ao cárcere e, agora, aos impasses de seu julgamento. O que percute, entretanto, apesar da vitória dos marines, que suas mortes passam de dois mil, nesta torna dos caixões com a bandeira americana, que não é reproduzido no universo mediático dos Estados Unidos.
O governo Bush logrou associar a ocupação ao esquema generalizado de luta contra o terrorismo, ampliado à dimensão global do anonimato, para além das intentonas do Al-Qaeda. Bin Laden, aliás, não deixa dúvidas, nas últimas proclamações, de que, após a derrubada do World Trade Center, fica na mira da guerra sem quartel o edifício mais alto dos Estados Unidos, ou seja, o "Library Building" e sua torre coruscante, a 343 metros do solo em Los Angeles.
A "civilização do medo" passa a imperar em todos os Estados Unidos criando o imperativo da segurança nacional por sobre todo o repertório das liberdades da sua tradição secular. As últimas semanas viram, contra todos os primeiros vaticínios, a prorrogação do Patriot Act no Congresso, e dos orçamentos para a ampliação do poder bélico em Bagdá. Esmaecem-se também, no momento, as tentativas de abertura às visitas internacionais de Guantánamo. O Salão Oval teria logrado passar à opinião pública um sentimento comum, quanto à agressão, a surgir de todos os pontos neste novo Jihad que se quer hoje atribuir ao mundo islâmico, sem distinção entre os radicais e a visão efetiva da "outra cultura" diante do Ocidente.
Jogo de paradoxos
Reduzem-se, neste momento, as expectativas de que o Oriente Médio, visto como novo Vietnã reforçasse, nos democratas, uma campanha antibélica, para a derrubada republicana no próximo pleito. Os índices de baixa de Bush, entretanto, vão muito mais aos fatos internos e, sobretudo, da impotência diante do tufão Katrina em Nova Orleans.
Este começo de 2006, entretanto, pode levar, num jogo de paradoxos, a possível queda, neste momento, da nova investida de Rumsfeld, mirando o segundo eixo do mal, a partir do extremo antagonismo antiamericano do governo de Ahmadinejad. Eis que, de repente, e não mais que tal, os Estados Unidos na iminência de passar à solução última, diante da provocação da escalada nuclear do presidente iraniano, freia e aceita a parlamentação com o personagem.
Tal enquanto a desestabilização no Iraque escapa do controle dos marines já que não se trata mais de derrubar o ditador Saddam, mas de se expor, sem retorno, a uma verdadeira guerra civil entre sunitas e xiitas, no país-chave do equilíbrio internacional no Oriente Médio. O Irã tem o comando xiita internacional, e pode lograr, com as suas facções, no Iraque, a temporização num quadro a correr rápido para uma guerra de trincheiras, nas próprias ruas de Bagdá e no retorno catastrófico das "guerras de religião" no imo do mundo muçulmano. A fissura interna da sociedade civil iraquiana assomou como resultado das eleições livres e das evidências de forças políticas expostas, por uma vez, ao jogo dos seus pesos e maiorias reais.
Inaugurada no seio mesmo do mundo islâmico essas representações inesperadas do seu confronto recuaram, do Jihad, para o conflito no seu seio, e a emergência inédita de uma guerra civil com o fruto inquietante destes choques emergentes. Ahmadinejad ganha uma trégua com o que chama do "Grande Satã", na torna ao primeiro vocabulário de Khomeyni. Na troca de trunfos, a iminência de uma Star War em Teerã se freia pela estabilização do conflito interno do Oriente Médio, entre sunitas e xiitas, suas expectativas calculadas a longo prazo, suas mediações e suas arbitragens necessárias.
O Salão Oval, sócio inesperado do "eixo do mal" nesta empreitada vai dever ao iraniano a manulonga, para manter-se no Oriente Médio. A instabilidade interna se substitui ao perigo de Saddam, com todos os juros e pagas que justificam a verdadeira tentação. Não é de sair, mas de se assentar de vez na garantia de que do conflito sem fim entre sunitas e xiitas amorteça o choque do mundo islâmico e a confrontação sem fim com o Ocidente.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 24/03/2006