Encontra-se Ascendino Leite numa posição de bom isolamento poético na atual literatura brasileira. Na realidade, promove ele, em seus versos, todo um curso de poesia. Ao juntar palavras num determinado ritmo, ergue um mundo em que se condensa o muito que a vida nos oferece como impulso, como percepção, como entendimento, acima de tudo como paixão. E é principalmente pela paixão que se distingue sua poesia, paixão que atravessa toda a sua obra e marca sua presença em nossa literatura.
Quando iniciou, há muitos anos, suas atividades literárias, ainda residente no Rio de Janeiro, Ascendino demonstrou ser um mestre do romance. Livros dessa época - "O salto mortal", "A viúva branca" e "A paixão" - têm lugar certo na lista dos melhores livros brasileiros de ficção do século XX.
De volta à sua Paraíba natal, ali publicou uma série de volumes de poesia e de belos "Diários literários". O livro que dele agora sai, no sexto ano do novo milênio, mostra, ao longo de 671 páginas, uma poesia que é das melhores que este País já produziu. No pórtico do volume, declara: "É a poesia que me vai expulsar desta miséria, livre como o corpo de um recém-nascido."
O uso da palavra em poesia revela que a linguagem de Ascendino é o verso, é a medida no tempo e no espaço, nele a palavra, o ritmo, o sentido, os sons, tudo nasce junto, com o poeta chegando a uma perfeita unidade de estilo em que a coesão das palavras está ligada a um sentido poético natural e de funda originalidade.
O poeta sabe que a palavra existe para chegar a ser poesia e só no poema encontra sua plena realização. Daí, a declaração de princípios que Ascendino insere em seu livro: "O verdadeiro destino da palavra é, com certeza, a poesia. É o seu rumo, o seu objetivo, o seu ponto de chegada. Mas seu agente, sua força ejetora por excelência, é o intimismo do artista, baseado no realismo lingüístico e na imaginação criadora desatada."
De vez em quando, por meio de dois versos, chama-nos a atenção para o essencial: "Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta. Cada sentido é um dom divino."
Os poemas de amor são maioria entre os versos de Ascendino, como este, em que poeta persegue a amada no espelho: "Queria alcançar-te no espelho/ antes de nele te perderes/ como os suaves sonhos/ que chegue à fantasia/ e em que, por minha vez, desapareço."
Ou este: "Não importa que a dor antiga te entristeça/ e transpareça no secreto pudor do rosto teu./ Vale a discreta ambição do amor carente/ a acender no teu olhar calor e vida."
Já Croce, comentando Vico, disse que o homem "antes de poder articular palavras, canta: antes de falar em prosa, fala em verso: antes de usar termos técnicos, usa metáforas."
Ligado à paixão, revela também Ascendino Leite um "cuidado" no sentido em que Heidegger adotou a palavra. Isto é, de o escritor ver com precisão onde se acham os aspectos essenciais e primeiros de cada assunto. Esse cuidado leva-o a um entendimento severo de cada chão, de cada plano, cada terreno, que seus versos percorrem.
Poesia também é cântico e, ao escolher o amor como tema, inclusive no seu lado erótico, insere-se o poeta de hoje numa tradição milenar do fazer poeta. Pierre Jean Jouve assim definiu essa escolha: "La belle puissance érotique humaine".
Uma ligeira sombra erótica perpassa pelos poemas de Ascendino Leite, principalmente na série de "Vales", principalmente o "Vale V" e o "Vale VI", dizendo o segundo: "Esta noite, quando cessaram nossas vozes/ e, com isso, as palavras que as sonorizaram,/ bem vivamente senti que te amava mais/ que os meus braços, na ânsia de estreitar-te,/ como um noivo à vista do leite ardendo/ para as núpcias desejadas, iminentes." O tema continua e forma um conjunto com os poemas de I a VI.
De vez em quando, versos de Ascendino assumem tons de narrativa e de objetiva afirmação de coisas. Está ele aí numa tradição para a qual T.S.Eliot chamou a atenção, num estudo sobre Shakespeare que, tanto nas tragédias como em poemas, fazia narrações em versos.
Sob esse aspecto, o volume inteiro chamado "Poesia ou morte" é uma narrativa em que o poeta conta (e canta) os caminhos percorridos por ele e por todos nós ao longo de paisagens, pessoas, pensamentos, lembranças, objetos, lugares, casas, recantos do mundo, quartos, ruas, igrejas, morros, mares, rios, sonhos, brigas, choros, jardins, semáforos, praias - e tudo mais que deva aparecer num livro em que, na realidade, nada do que é humano lhe parece alheio.
E vale a pena que não esqueçamos os pensamentos, aos quais o poeta dedica cinco versos: "Pensamentos, pensamentos.../ assim aos magotes, batei-me./ mas depois, por favor, ide./ Ide embora. De uma vez./ quero ficar só."
"Poesia ou morte", de Ascendino Leite, é uma apresentação da Editora Idéia, de João Pessoa. Prefácio de José Rafael de Menezes e Francisco Carvalho. Editoração eletrônica de Magno Nicolau, digitação de Marconi N. da Costa, revisão de Ivonete Belarmino de Souza, iluminuras de Mercedes Cavalcanti.
Tribuna da Impressa (Rio de Janeiro) 11/04/2006